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quarta-feira, 6 de setembro de 2017

JOAO AZZANELO CARRASCOZA ...somos as limitações de nossa linguagem ...

JOAO AZZANELO CARRASCOZA 
Por Revista Brasileiros
João Azzanelo Carrascoza  por uol

PAULO VASCONCELOS 
FRANCISCO BICUDO* 

Não é tarefa simples transitar pelos distintos e instigantes meandros da literatura de ficção – do conto ao romance -, passando pelas narrativas para crianças e jovens e investindo ainda com propriedade em reflexões singulares sobre a linguagem publicitária. João A. Carrascoza passeia com muita habilidade e competência por todas essas estradas. O autor possui 35 livros (romances, contos, infantojuvenil, didático). 

Bisneto de um carroceiro que andava pela cidade de Cravinhos, interior de São Paulo, declamando trovas, filho de um exímio contador de histórias e leitor voraz durante a juventude, João é dono de uma estética tão original e contundente quanto delicada, com a argamassa de uma humanização tão necessária nesses tempos de preconceitos e intolerâncias. 

Seus escritos, gritos tranquilos de palavras bem elaboradas, prosa reta, estável e limpa, sem arroubos de firulas, não esquece as origens interioramas consegue simultaneamente afirmar nossa condição de sujeitos universais. 

Sua prosa poética, pontuada pelo cotidiano, pelos silêncios e não-ditos – características desde sempre destacadas por críticos como José Paulo Paes e Alfredo Bosi , trata muitas vezes de perdas e de medos. Sem abandonar esperanças. Miguel Conde, jornalista, editor e ex-curador da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), escreveu em artigo publicado pela revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea (edição 34, julho-dezembro de 2009) que “nos seis livros de contos até aqui lançados por João Anzanello Carrascoza, reencontramos com notável regularidade uma mesma voz: ele fala quando os personagens emudecem, atribui sentido ao que parecia casual, recorda coisas esquecidas, demora-se sobre aquilo que é passageiro, trivial e insignificante. Ao mesmo tempo íntima e distinta daquilo que conta, ela expõe ao leitor, sem constrangimento, sem reservas, um sentimento de mundo fundado na compaixão – e por isso marcado por uma combinação pungente de encantamento e dor diante do movimento incessante das coisas. Essa exposição é uma forma deliberada de candor, e uma interpelação. Talvez seja um chamado...”. 

Graduado em Publicidade pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), com mestrado e doutorado pela mesma instituição, João reflete em suas obras publicitárias a respeito das características dos textos apolíneo (razão) e dionisíaco (emoção). 

Em “Aos 7 e aos 40”, romance lançado no ano passado, há duas narrativas que se entrelaçam – a da criança e a do maduro quarentão -, reunindo inocências, descobertas, nostalgias e dúvidas, combinando dois momentos distintos da vida do mesmo personagem. Já em “Caderno de um ausente”, o mais recente romance (2014), um pai já com mais de 50 anos, temendo a morte e receoso de que não verá a filha Beatriz (recém-nascida) crescer, vai registrando num diário reflexões, impressões e inquietações, na expectativa de que essas memórias possam um dia ser lidas por Bia. 

Para Carrascoza, “somos as limitações de nossa linguagem e, simultaneamente, o nosso progresso ao operá-la. O silêncio seria o ponto máximo, a perfeição, que a linguagem poderia alcançar. Mas, como é impossível realizarmos tal milagre, nosso fim é mesmo o verbo, embora não mais o do princípio”.  



1- A terra, a cidade, o interior, a cosmopole São Paulo e a literatura. 
Nasci em Cravinhos, pequena cidade do estado de São Paulo – e, ainda jovem, fui cursar comunicação na capital, de onde nunca mais saí. Minha alma padece dessa dicotomia natureza e urbanidade, sendas verdes e paisagens de concreto. O mundo de minhas nascentes segue comigo aqui, na metrópole, como uma pele anterior a minha pele – eu me sinto povoado de rios, montanhas, árvores, bichos. Eu me sinto vento, nuvens, noites estreladas. E, como toda rama fora de sua terra, levo minha seiva ao produto que eu fabrico. Somos o que somos, e o que somos vaza para nossa literatura. Se eu sou aquela lavoura antiga, as minhas histórias não podem senão ser cultivadas nela, sob pena de resultarem em frutos não autenticamente meus. Se eu sou aquelas ruas de terra, aqueles amanheceres além dos canaviais, eles vão dar, de alguma forma, no universo ficcional que mana de minhas mãos.  

2- As marcas na sua literatura e dados de tua subjetividade construída e em permanente mutação, como emergem? 
Minha literatura está marcada pelo signo da perda e por uma invariável suspeição, talvez por ser essa minha percepção da existência. Quanto mais envelhecemos, mais perdemos, porque vamos sobrevivendo às pessoas queridas, ainda que ganhemos mais tempo de usufruto do mundo. Estamos num canto luminoso e, de repente, a escuridão. A alma distraída, no calor, e, num instante, o inverno. Há uma substância imutável nas profundezas de minha subjetividade, mas, noutras partes dela, onde se abrigam os conflitos emersos do presente, lá, é natural, os fatos novos me levam a reagir, a repensar, a me reescrever, o que, de certa forma, gera em mim outros modos de ver, ser e sentir a vida.  

3-Sua vida e a literatura ,..........uma biografia curtíssima...  
-A construção de sua obra, como se fez, fatos marcantes e esse seu zelo pela palavra, como um antropólogo/engenheiro dela...ou um semioticista esmerado 
Sou bisneto de italianos que chegaram ao Brasil depois da Primeira Guerra Mundial e neto de espanhóis republicanos que migraram para cá nos anos 1950. Meus ascendentes, de ambos os lados, foram parar nas lavouras de café do interior paulista. Um de meus bisavôs era carroceiro, andava pela cidade declamando trovas; meu pai era um hábil contador de histórias, de forma que talvez venha daí, do atavismo, o meu gosto pela mistura da prosa com poesia. Em Cravinhos, onde vivi até os dezessete anos, fui um leitor voraz. Ao gosto por ouvir histórias se somou o prazer de descobrir outras tantas no território da escrita. Como no poema Dactilografia, de Fernando Pessoa, me dei conta de que a literatura era uma segunda vida. Daí em diante, até hoje, peguei essa vereda que cruza o tempo inteiro, em sua extensão, a vida de dentro com a vida de fora dos livros. Menino, perdi meu pai num acidente de automóvel e, se a perda se deu nprimeira vida, o seu eco se espraiou pela segunda – minha obra é essencialmente a narrativa de um dano, o espanto diante dele e, no fundo, ainda que dolorosa, a sua aceitação. Logo que aprendi a ler, encantei-me com o corpo das palavras, sua música, seu cheiro, sua sombra.  

4-Uma crítica sobre sua obra e demarcação de blocos ou não  
A crítica pode iluminar o nosso trabalho à medida que compreende a nossa diferença e nos desafia a transformar nossas deficiências, tanto narrativas e estilísticas, em virtudes. Quando estreei, com o livro de contos Hotel Solidão, tive a sorte de receber críticas convergentes em relação ao meu registro lírico. Cid Seixas foi o crítico que se dedicou a demarcar esse traço de hibridização em minha obra: a prosa contaminada pela poesia (poesia não somente como trato refinado da linguagem, mas também como sua substância – a transformação da experiência em algo sensível). Um valor expressivo que aprendi, como escritor, foi a liberdade de experimentar formas narrativas na época em que participei de uma oficina de criação literária coordenada pelo João Silverio Trevisan. Uma crítica marcante que me conscientizou de meus recursos, e me empenhar em melhor explorá-los, foi a resenha de José Paulo Paes de meu livro de contos O vaso azul. Ele foi o primeiro a afirmar que as minhas histórias se assentavam no cotidiano, mas o desfecho resultava em “vislumbres epifânicos”. A prosa poética, a forma casada com o conteúdo (a história, para mim, tem um jeito mais forte de ser contada e o desafio é encontrá-lo) e a epifania foram sublinhadas depois por pares que escreveram sobre minha obra, como Luiz Ruffato, Nelson de Oliveira, Cristovão Tezza. E a esses aspectos se somaram a presença do silêncio e do não-dito, pontuados por críticos como Alfredo Bosi. Também tive o privilégio de ser lido pelo Raduan Nassar, com quem aprendi a assumir os temas constitutivos de meu ser, como o núcleo familiar, o mundo rural, a descoberta do outro.  

5-A sua produção tem uma estilística e ... os seus prêmios 
Penso que sim, claro, mas sinto que não sou quem melhor pode apontar os aspectos dessa estilística. Como produtor de meus textos, e leitor de mim mesmo, noto certos traços que me configuram como ficcionista – o narrador com lente elegíaca, o gosto pela metáfora, a exploração rítmica da narrativa, os diálogos em itálico, os não-dizeres tão essenciais quanto os dizeres, o registro que mescla o literário com o coloquial, a contaminação do épico pelo lírico. Quanto aos prêmios, queiramos ou não, eles são balizadores do campo artístico. Por um lado, à priori, revelam que há leitores críticos, os jurados, valorando positivamente a nossa obra e reconhecendo a sua singularidade. Por outro lado, à posteriori, podem chamar atenção de outros leitores, críticos, ou apenas comuns, além de curadores, editores, tradutores etc.; ou seja, em geral alargam a visibilidade de um autor e de sua produção. Mas deve-se relativizar sempre a relevância dos prêmios – eles são concedidos por uma comissão, que, embora possa fortalecer o cânone, não é a única que influi na sua consolidação.  

6-Como falar de uma literatura brasileira sem preconceitos regionais e uma latino-americana. Como é tua leitura dos Latino americanos? Sua obra está traduzida...que idiomas. 
Há muitos escritores de valor fora do eixo Rio-São Paulo, que deveriam ser lidos e estudados nacionalmenteAs editoras, os institutos que realizam eventos literários e a imprensa podem trazer à luz obras de autores reconhecidos apenas em sua região e mesmo daqueles em ascensão. Procuro ler livros já publicados e, às vezes, originais, de escritores de todos os cantos do Brasil. É uma literatura de qualidade que, no entanto, vive nos subterrâneos, o que é uma pena, pois poderia enriquecer mais a cena cultural. Em relação à literatura latino-americana, o seu espaço de difusão entre nós está aberto e vicejante há décadas, com a tradução de obras de autores de quase todos os países. Aqui, desde muito, podemos ler tanto aqueles que tradicionalmente apareceram com o boom da literatura latino-americana, quanto os mais novos, que não param de chegar. A via contrária é que não tem sido igualmente irrigada: a obra de autores brasileiros tem pouca capilaridade nas terras “hermanas”. Meu livro Espinhos e alfinetes saiu meses atrás no Uruguai. O volume do silêncio foi publicado na Espanha, Aquela água toda na Suíça, Aos 7 e aos 40 será lançado em breve na França. De forma esparsa, meus contos saíram em antologias em Portugal, França, Espanha, Inglaterra, Estados Unidos, Índia, Suécia, México, Croácia e Itália.  


8-Você se esparrama bem dentro dos ditos gêneros literários, em todos, mesmo sem assumir o poeta que você é, e o que me diz? tem desejo pelo livro de poesias...quem você costuma ler na contemporaneidade ? 
Eu acredito que uma arte é sempre contaminada por outra arte, e, assim também, não há um gênero literário puro. A fronteira entre eles se estreita cada vez mais. Grande sertão:veredas é um romance por onde corre o rio principal de uma história. Mas também é uma obra atravessada por pequenos rios-histórias, episódios que se constituem contos dentro do romance. Vida secas pode ser lido como romance, e, simultaneamente, volume de contos, uma vez que os capítulos são episódios secos e fazem sentido sem seus afluentes. Há dezenas de outros exemplos na tradição literária. A pentalogia Inferno Provisório, de Luiz Ruffato, pode ser lida como um conjunto de histórias que compõem um grande romance-móbile. Eu procuro vazar meus textos sem muita preocupação em definir o gênero, seja romance, novela, conto. Embora estejam abertos para o universo da poesia, são predominantemente prosa. Ou, talvez, sejam prosa de um poeta que não escreve poemas. Sou leitor constante de obras poéticas – aprecio em especial aquelas nas quais a poesia, misturada a outros gênerosse faz presente. Por isso admiro a obra de Borges, de Cortázar, de Clarice Lispector. O que eu costumo ler? Eu leio os clássicos, mesclando-os com obras de autores contemporâneos que me inquietam por vezes, justamente, pela impureza de seu gênero: as histórias de Alice Munro, por exemplo, parecem romances-bonsai; são contos, mas com a densidade e, em alguns casos, quase a extensão de romances. Outro exemplo: Fora do tempo, de David Grossman, é uma notável mistura de prosa, poesia e teatro.  

9-A experiência com o público infanto-juvenil como é e com tantas obras.. de onde veio a ideia de fazer literatura para esse público. 
Cito, mais precisamente agora, os versos de Pessoa, que antes mencionei: “Temos todos duas vidas:/ A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,/ E que continuamos sonhando, adultos num substrato de névoa; A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,/ Que é a prática, a útil...” Pois então: às vezes, eu tenho desejo que essa segunda vida seja mais inventiva e lúdica, e, então, eu me transporto, engendrando histórias, para um outro território, que continua sendo meu, apesar de possuir outras linhas, nem sempre distintas daquelas expressas em meus textos “adultos” por assim dizer. A cada um de nós cabe embarcar num tipo de sonho para preencher essa segunda vida. Pela leitura e pela escritura, podemos escolher um sonho hoje, outro amanhã. No meu caso, optando por esse outro mundo, o sofrimento e a angústia de existir não desaparecem, mas dão espaço a certo júbilo e à fantasia.  

10-  Seu último romance e a poética Cabralina tem relações ? 
Sim, sou um amante da obra de João Cabral de Melo Neto; Morte e vida Severina foi uma de minhas matrizes para a elaboração do Caderno de um ausente. Busquei uma ordem inversa ao do poema, que começa com Severino encontrando a morte em seu caminho e, por fim, assistindo à chegada de uma vida. Também procurei inserir um segundo vetor ficcional na história. O narrador inicia seu caderno escrevendo sobre o nascimento de sua filha, logo após o seu parto, dando-lhe as boas vindas, mas também a lembrando que não se pode ocultar a morte ante a estreia de uma vida. No final do livro, o signo da morte se apresenta, mas traz consigo uma nova vida, ainda que dolorida.  
  
11-Obra ainda inédita, tem (? ), fale um pouco e tendo  mande pequeno trecho. 
Anos atrás, quando passei um período numa residência literária na Suíça, o Château Lavigny, terminei de escrever os contos de Espinhos e alfinetes e aproveitei para elaborar o projeto de um volume de minicontos. A ideia era produzir “histórias concentradas”, restritas a uma linha de texto, igual a um verso – e menor que um tweet. Eu queria me enveredar por uma tradição (dispersa) desse tipo de narrativa, como o fez Monterroso (Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá), Hemingway (Vende-se sapatos de bebê nunca usados) e Drummond (Stop. A vida parou ou foi o automóvel?), entre outros escritores. Perseguia um correspondente, na prosa, ao que representa o haicai para a poesia. Mas, por conta de outros trabalhos, mais urgentes, deixei o projeto em latência. Há alguns meses, retomei a ideia e a submeti ao programa Rumos Itaú Cultural. Esse projeto, chamado Linha única – como já disse, o desafio é escrever contos numa única linha –, foi selecionado e, então, comecei a desenvolvê-lo. Ao produzir as primeiras micro-histórias, percebi que se comportam como textos “acabados” (se bastam por si), mas também como “resumos” de narrativas que, no futuro, eu posso desdobrar para a extensão habitual de conto. Eis algumas “linhas únicas 


Duplo desfecho 
Tentou abortar com arame. Fim. 

Policial aposentado 
O que fazer com aquela vontade de matar? 

Chuva de verão 
Abri a janela – e me ensopei de paisagem.  

Dor 
A vida, sem anestesia. 

Piedade 
Vivia dizendo: cada um tem o nome que merece 

Fogo 
Acendeu meu desejo com o rastilho de sua língua.  

Fuga 
Saiu correndo. E tropeçou na voz dele. 



Veneno 
Uma gota. E tudo se diluiria. 

12- Como você analisa ou vê a criação literária e a poética como resultado de uma tensão na própria língua, na sua produção, digamos assim, segundo Deleuze e …onde você flagra este debulhar na sua obra, aonde vejo abrir um mundo de imagens que transmuta o próprio roteiro da narrativa…duas tardes..o vaso azul 
Para emoldurar uma emoção, ou seja, para criar literariamente um episódio que possa “afetar” o leitor de alguma forma, é preciso demarcarmos, como num desenho, os traços desse quadro onde a ação se desengloba. O ofício contínuo e consciente com a linguagem nos faz compreender quais são as cores, os detalhes, a perspectiva desse “instante” ficcional, se falamos de tempo, ou desse “mundo possível”, se preferimos realçar o espaço onde a história acontece, e, seja por nossa virtude, seja por nossa limitação, são essas cores, esses detalhes e essa perspectiva, até mesmo a leveza ou o peso de nossas pinceladas, os agentes determinantes da narrativa. Somos as limitações de nossa linguagem e, simultaneamente, o nosso progresso ao operá-la. O silêncio seria o ponto máximo, a perfeição, que a linguagem poderia alcançar. Mas, como é impossível realizarmos tal milagre, nosso fim é mesmo o verbo, embora não mais o do princípio.  

* Francisco Bicudopaulistano, 42 anos, é formado em Jornalismo ECA/USP-mestre em Ciências da Comunicação ECA USP.Professor Universitário Teoria Literária, Autor de vária obras, Colaborador da Revista FAPESPescreve também em seu blog pessoalwww.oblogdochico.blogspot.com 

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

EM SE PLANTANDO, TUDO DAVA...(capturas do Face)


Ao ler hoje alguns posts, no facebook, deparo-me com um, do amigo e escritor brasileiro, radicado em Berlim, Antonio Brasileiro, surpreende-me,  e não , seu longo texto e que vale a pena ser lido e, mais, a sua coluna na Cultura e Mercado, (http://bit.ly/2wO8qmO),como sempre, aposto.Antonio não se mete atoa na escrita, não é? LEIAM Paulo Vasconcelos



Antonio  Salvador -Foto: S. Felber.

EM SE PLANTANDO, TUDO DAVA
Basta um contraponto hoje em dia para ser acusado do que até Deus duvida. Como Deus já não duvida de coisa alguma, fui acusado de quem duvida de Deus... Em outras palavras, fui chamado de comunista.
A causa de tudo foi um artigo a respeito da condenação do ex-Presidente Lula, intitulado “Staat im Sumpf” (Estado no lodaçal), publicado pela revista alemã Der Spiegel, o qual, inopinadamente, fiz circular nas redes e foi recebido com indescritível paixão. O jornalista alemão, autor do artigo, expressava a leitura dos fatos tais quais percebidos deste lado do mundo, isto é, a condenação do ex-Presidente – como aliás tudo o que viceja no pós-verdadeiro Brasil – teria fundo essencialmente político, seria uma tentativa de inviabilizar sua candidatura em 2018. Foi o suficiente.
Que, do pé para a mão, eu virasse comunista, até aí, estamos às ordens. A grande surpresa é que, numa gradação fantástica, a própria Der Spiegel – pelo fato de ter publicado a matéria –, fosse acusada de comunismo.
Feito um cálculo de cabeça, somados todos os quadrantes do mundo ocidental, o triângulo Rio/São Paulo/Curitiba é o único onde ainda se fala em comunismo num tom de ameaça premente. Além desse fenômeno, há outros que ultrapassam as raias da anomalia e descambam direitinho para o sobrenatural. É a sina dos triângulos enigmáticos... O das Bermudas, por exemplo, fica no chinelo; a ciência, se já não encontrou para ele todas as respostas, encontrará um dia. No caso do Brasil, a certeza é que as charadas tendem a se multiplicar e a rodopiar, tragadas afinal pelo buraco negro de todas as capacidades cognitivas.
Como a Der Spiegel, fundada por oficiais do exército britânico durante a ocupação dos Aliados em solo alemão pós-Segunda Guerra, poderia ter inclinação comunista, ninguém me explicou. Que tivesse vários de seus jornalistas banidos pela DDR (antiga Alemanha Socialista) e escritórios fechados, durante a década de 70, nada disso vem ao caso. Que a própria Der Spiegel, desde sua fundação, alertasse contra os perigos do comunismo, inclusive no Brasil, para que mexer nisso?
Ora, que graça teria a crônica sem uma notinha de época?
Pulga de Flohmarkt, encontrei os dez primeiros exemplares da revista e comprei-os de olhos abertos e nariz tapado. Não sei se foram os espirros ou outra coisa, meus olhos ficaram logo marejados ao me deparar, já no terceiro volume, com a primeira notícia da Der Spiegel sobre o Brasil, publicada em 18 de janeiro de 1947. E qual era o tema? Qual poderia ser? Não é preciso perguntar uma terceira vez. O tema era crise: “Kaffeeland in der Krise“ (País do café em crise).
O “café”, no título, seria apenas uma maneira de apresentar ao público alemão esse país, então desconhecido, chamado Brasil, “18 vezes maior do que a Alemanha de 1937”, cujas eleições iminentes despertavam “especial tensão” entre observadores americanos. O medo reinante era o “grande progresso” que os partidos comunistas vinham fazendo “em toda a América Central e do Sul”.
Embora, até aquele momento, “em nenhum país” tivessem tomado “o poder formalmente”, afirma a revista, os partidos comunistas na América do Sul “representam aos EUA uma ameaça maior do que os partidos nacional-socialistas ou fascistas”.
Na disputa em curso pelo poder, a revista cita a conservadora UDN e os Integralistas, “esse partido fascista”, “ainda não totalmente organizado”.
As duas forças aparecem como opositoras à central figura de Getúlio Vargas que, embora tivesse sido destituído “há pouco mais de um ano”, é denominado como “um Poder” em si, o qual, acrescenta a revista, “dificilmente alguém no Brasil poderá negar”. Destaca-se o amplo apoio da população trabalhadora, conquistado por Vargas “por meio de suas leis sociais durante seu governo”, e que o “comportamento” de Getúlio “mostra que ele está se esforçando para aumentar sua influência” e para “ao menos desempenhar nos bastidores um papel determinante”, afinal “ele tem conexões em todos os lados”.
Não sei se me acompanham... mas será o espelho dos tempos?
O “tácito apoio” de Vargas a Prestes e ao Partido Comunista é sublinhado. E o desfecho do artigo ganha atmosfera amedrontadora: “Embora hoje a imprensa brasileira seja 95% anticomunista, embora as forças armadas e a Igreja sejam nitidamente anticomunistas, é de se admitir que os comunistas aumentarão consideravelmente seus votos nas eleições presidenciais”.
Fecha-se o círculo.
No país do café, o comunismo tornou-se o nó górdio desse círculo que nos faz pensar estarmos sempre diante da mesma velha notícia. É uma assombração histórica que nunca apareceu de fato, mas que todos dizem tê-la visto – e, justo onde, antes no Catete, hoje em Brasília!
Em 2017, “ainda não há uma imagem clara da situação política”, como já não havia em 1947, segundo a Der Spiegel. Mas algumas coisas mudaram. Além de tudo o mais que, no país do café, anda em baixa, a cafeicultura vive seus piores dias. Pela primeira vez, em mais de 300 anos de história de plantio, o governo interino em exercício viu-se na iminência de importar café. Baixou-se até uma portaria, houve barulho, gabinetes fervilhando e – como já é marca registrada – um passo para trás.
No último minuto foi suspensa a importação de 1 milhão de sacas. O motivo da reviravolta não tem a ver com um prognóstico positivo, mas sim com o medo da importação de pragas... Como se em qualquer parte pudesse haver pragas mais daninhas do que as já alocadas em solo nacional.

Berlim, segunda-feira, 28 de agosto de 2017.
* Texto escrito originalmente para a coluna "O Coice" do Cultura e Mercado.

sábado, 26 de agosto de 2017

REVOLTA DOS BÚZIOS, IDENTIDADE E PRESENÇA (capturas do Face)

Como sempre o Professor Florisvaldo Mattos aponta a história  para nos dizer melhor, assim ele nos conta dos 219 anos da Revolta dos Búzios, uma luta pela liberdade do Brasil, que esquecemos; para tanto é preciso redizer e redizer para que entendamos a nós, o Brasil de hoje.Paulo Vasconcelos

Florisvaldo Mattos UFBA

Participando hoje, pela manhã, de magnífica e consagradora sessão especial da Assembleia Legislativa, presidida pela deputada Fabíola Mansur, em memória da Revolta dos Búzios, pelo transcurso de seus 219 anos, um marco da luta pela igualdade e liberdade no Brasil-Colônia, convidado a compor a mesa, com políticos, professores e luminares do movimento negro da Bahia, levei para ler na tribuna o texto abaixo transcrito, ao final solicitado para figurar nos anais da Casa, como registro. 
Impressionaram o entusiasmo e a identidade do auditório para com o significado da iniciativa, expressados em cantos de hinos e fortes aplausos, especialmente para duas falas, a da professora Patricia Valim, especialista no assunto, e a de João Jorge Rodrigues, um ícone na luta pelo reconhecimento da importância do negro na sociedade brasileira.
Transcrevo abaixo o texto da palestra, agregando, como ilustração, a célebre pintura do francês Eugéne Delacroix, "A Liberdade Conduzindo o Povo" (1830), desde que o sumo das ideias e da pregação da conjuração baiana centrava-se na caudal de princípios que nortearam a Revolução Francesa, de 1789.



A COMUNICAÇÃO PÚBLCA 
NA REVOLTA DOS BÚZIOS

Florisvaldo Mattos
Senhoras e senhores, bom-dia.
Devo a minha presença nesta sessão especial à deputada Fabíola Mansur, que me agraciou com o gentil convite para dela participar, em razão de ter eu escrito um livro, por sinal publicado pela Assembleia Legislativa, em convênio com a Academia de Letras da Bahia, em 1998, por ocasião das comemorações dos 200 anos do movimento revolucionário, que se chamou Revolta dos Búzios, objeto dessa iniciativa merecedora de aplausos. 
Nesta obra, que recebeu o título de "A comunicação social na Revolução dos Alfaiates", deixando a parte essencialmente histórica da sublevação à competência dos historiadores, entre eles o professor Luiz Henrique Dias Tavares, seu mais destacado estudioso, preferi abordar, creio que pioneiramente, um ponto crucial que consistia em definir o papel da comunicação social na insurreição, optando pela designação mais repetida entre os estudiosos do fato histórico, hoje mais comumente chamado Revolta dos Búzios. 
Sucedeu que, na última década do século XVIII, um grupo de pessoas em diversas situações de classe, mas preponderantemente da mais baixa escala social, intentou promover um levante, que visava libertar o Brasil-Colônia do jugo português, empunhando múltiplas bandeiras, tais como independência da Capitania, implantação da república, abolição da escravatura, igualdade para todos, livre comércio com as nações do mundo, interrupção do vínculo com a Igreja do Vaticano, instituição do trabalho remunerado, melhoria do soldo militar e garantias para os plantadores de cana, fumo e mandioca, assim como para comerciantes.
No que se refere às ideias dos que estavam engajados no movimento de libertação, esse caldeirão efervescente pressupõe um vasto campo de procedimentos durante certo período, em que imperaram as relações de comunicação, para obtenção de consenso em torno dos propósitos da intentada conjuração. No entanto, desbaratada a revolta, o resultado de tão elevada aspiração ficou na história como exemplo máximo de sofrimento, crueldade e tragédia, recaindo as penas de enforcamento, seguido de esquartejamento, sobre quatro dos envolvidos, dois deles soldados (Luiz Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas do Amorim Torres) e dois artesãos (João de Deus do Nascimento, mestre alfaiate, e Manoel Faustino dos Santos Lira, então oficial alfaiate, mas ex-escravo), livrando-se da severa punição um quinto personagem, Luiz Pires, também artesão, porque fugira, desaparecera sem deixar rastros.
Tem-se uma ligeira noção desse quadro com a descrição do que era Capital da Bahia em 1798, ano da derrocada do movimento. Tratava-se de uma sociedade de vizinhança, aquela em que, conforme define a sociologia, a relação entre as pessoas se estabelece por via predominantemente oral, isto é, por canais diretos de comunicação, com a escrita (canal indireto) funcionando como forma subsidiária, sujeita a graus de instrução e, por isso mesmo, constituindo-se patrimônio de poucos. 
A estrutura social de então assentava-se no patriarcalismo e na economia escrava, em que pontificavam os senhores de escravos, dos engenhos, das terras, das minas e dos currais de gado e os lavradores proprietários, que só se distinguiam daqueles por não possuírem engenhos. Distribuía-se pelo intermédio, entre o senhor patriarcal e o escravo, um certo número de categorias: clero, magistrados, comerciantes, servidores da administração colonial, o chamado povo livre, os artesãos e os que ostentavam profissões qualificadas, além dos marginalizados da economia, como os mendigos, os desocupados e as prostitutas.
A educação formal se limitava ao ensino imposto e administrado pela Igreja, isto é pelos jesuítas, reduzindo-se ao estudo das sete disciplinas da chamada Ratio Studiorum, a que poucos tinham acesso. Não havia universidade, tampouco bibliotecas, livrarias e imprensa devido às rigorosas proibições impostas pela Coroa portuguesa, desde o início da ocupação do território. Segundo o maior estudioso dessa conjuração, o professor e historiador Luís Henrique Dias Tavares, os livros e outros escritos chegavam da Europa “nas cabeças, baús, amarrados de jovens brasileiros estudantes em Coimbra”, enquanto Nelson Werneck Sodré garante que vinham de contrabando, tudo às escondidas.
E quanto à população? Luiz dos Santos Vilhena, em suas "Cartas Soteropolitanas", situava a Capitania em menos de 200 mil habitantes, sendo desses 50 mil para o Recôncavo e menos de 60 mil para a Capital, o que praticamente iria se confirmar no censo realizado pelo Conde da Ponte, em 1807, com 51 mil para a Capital, sendo 28% compostos de brancos e 72% de pretos e pardos. Desses últimos sairia a esmagadora maioria dos participantes da planejada sedição, formada por escravos, artesãos, soldados e alforriados, mas também, embora poucos, por profissionais qualificados e religiosos, como o Padre Agostinho Gomes, que facultava livros à leitura, municiando o ideário dos descontentes com o statu quo da Colônia então identificados com os princípios dos revolucionários franceses de 1789.
O essencial desses princípios reflete-se no poema revolucionário intitulado "Décimas sobre a Igualdade e Liberdade", de criação atribuída a Salvador Pires de Carvalho e Albuquerque e, também, a Francisco Moniz Barreto, que o conjurado Manuel Faustino dos Santos Lira recitou, quando em depoimento o Juiz do Feito lhe perguntou se de sua letra tinha notícia, ouvindo do depoente, como resposta, que lera e decorara o poema, passando a repeti-lo oralmente. É este que agora leio, em versão crítica de ortografia atualizada.

DÉCIMAS SOBRE A LIBERDADE E IGUALDADE
Letra
Igualdade e Liberdade
No Sacrário da Razão
Ao lado da sã Justiça
Preenchem meu coração.

Décimas 
Se a causa motriz dos entes
Tem as mesmas sensações
Mesmos órgãos, e precisões,
Dados a todos os viventes,
Se a qualquer suficientes
Meios da necessidade
Remir com equidade;
Logo são imperecíveis
E de Deus Leis infalíveis,
Igualdade e Liberdade.

Se este dogma for seguido,
E de todos respeitado,
Fará bem aventurado 
Ao povo rude, e polido,
E assim que florescido
Tem da América a Nação
Assim flutue o Pendão
Dos franceses que a imitaram
Depois que afoitas entraram
No Sacrário da Razão.

Estes povos venturosos
Levantando soltos os braços
Desfeitos em mil pedaços
Feros grilhões vergonhosos,
Juraram viver ditosos,
Isentos da vil cobiça,
Da impostura, e da preguiça,
Respeitando os seus Direitos,
Alegres, e satisfeitos,
Ao lado da sã Justiça.

Quando os olhos dos Baianos
Estes quadros divisarem,
E longe de si lançarem
Mil despóticos Tiranos 
Quão felizes, e soberanos,
Nas suas terras serão!
Oh! Que doce comoção
Experimentam estas venturas,
Só elas, bem que futuras,
Preenchem o meu coração.

No que respeita à minha análise do movimento, baseada em fontes primárias e secundárias, interessaram-me fundamentalmente as relações de comunicação que permitiram, seja no nível interpessoal, pela via oral, com predominância da conversa e do recado, seja no da comunicação manuscrita, com cartas, bilhetes e avisos, atuando em dois planos: no da formação da consciência política e revolucionária e no da preparação para o levante. E pude observar que todo o processo, toda a engrenagem conspiratória, claramente se consumira em atos de comunicação, havendo, no entanto, um momento de evolução nessas relações, determinante para a frustração e o fim trágico do movimento. 
Por meio de técnica mais aperfeiçoada do uso da escrita, os rebeldes conseguiram de repente superar as limitações da comunicação de círculo privado entre pessoas, evoluindo para um nível mais amplo – o da comunicação pública, de caráter unilateral e indeterminado, mesmo em manuscrito. Foi o que aconteceu a partir da madrugada de 12 de agosto de 1798, quando a população da Capital foi surpreendida com uma série de textos manuscritos, em número de dez, afixados em locais públicos, para onde convergia grande número de pessoas, tais como portas de igreja, mercados de peixe, carne, frutas e legumes, cais do porto, portas de quartéis, tendas e oficinas de artesãos – onde em verdade efetivamente operava-se o cotidiano da cidade -, veiculando mensagens de conteúdo basicamente político-ideológico, em prol de uma reforma social, embora expresso de forma genérica. Era inegavelmente um claro avanço, com a comunicação processando-se em grau mais amplo de destinatário.
A partir daí, deflagrada a perseguição, que já vinha sendo cogitada em razão de denúncias levadas ao governador e até à Coroa em Portugal, 49 foram os presos acusados de conspiração, 40 deles distribuídos por ofícios de baixa qualificação ou simplesmente escravos, instalando-se, por conseqüência, dois processos regidos por dois desembargadores fiéis à Corte: um, Manoel Pinto de Avelar Barbedo, então Ouvidor Geral do Crime, para investigação do que se passou a chamar "boletins sediciosos", espalhados pela cidade, e outro, Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto, voltado para a reunião de preparação para o levante, que fora convocada para o então chamado Dique do Desterro, naquele tempo um lugar afastado e ermo. 
Aqui reside um ponto crucial, a presença desses boletins sediciosos, que foram, para os revolucionários, como digo no livro, “o seu jornal, seu instrumento de divulgação de idéias e definições para um público mais amplo, que extrapolava o circuito da conspiração até aquele momento”. 
Tendo em vista esse aspecto, sem fazer praça de originalidade, tomei os dez boletins sediciosos que se espalharam pela cidade como a mais expressiva e inovadora forma de comunicação indireta utilizada pelos participantes da conjuração, desempenhando, para a época, o legítimo papel de jornal manuscrito, por meio do qual os conjurados difundiram as suas idéias e projetos de reforma social, com sublevação da ordem constituída, para um público indeterminado – chamado por eles de Povo Bahiense -, com características de comunicação pública, unilateral e indeterminada, como seriam pouco depois – no Brasil e na Bahia – os jornais impressos. 
Começando, primeiro, pela "Gazeta do Rio de Janeiro", autorizada por carta régia de Dom João VI, em 1808, a prática do jornalismo surgiria na Bahia, em 1811, com o pioneiro "Idade d´Ouro do Brazil", publicação de linha oportunamente submissa aos ditames do poder colonial, embora trouxesse inscritos em seu cabeçalho, com presumível toque de ironia, estes dois versos do poeta quinhentista português, Sá de Miranda; 
"Falai em tudo verdades 
A quem em tudo as deveis." 
Só que, no Brasil-Colônia, as verdades proclamadas e aparentemente aceitas eram as do regime absolutista colonizador.
Motivos de uma das devassas que apuraram a conspiração, esses dez boletins sediciosos visavam, em essência, alcançar um público, uma coletividade de pessoas, em apoio do movimento. Dirigidos ao Povo Bahiense, cinco eram encabeçados como Aviso, um como Nota e quatro como Prelo, palavra que sintomaticamente fazia ressoar a técnica de impressão inaugurada por Gutenberg, que deu origem a toda a uma consagrada cultura editorial e gráfica no Ocidente. 
Dois desses boletins vão abaixo transcritos na versão crítica de ortografia atualizada, um intitulado Aviso ao Povo Bahiense, o outro, Prelo.

Aviso ao Povo Bahiense
Ó vós Homens Cidadãos, ó vós Povos curvados e abandonados pelo Rei, pelos seus ministros.
Ó vós Povos que estais para serdes Livres, e para gozardes dos bons efeitos da Liberdade; Ó vós Povos que viveis flagelados com o pleno poder do Indigno coroado, esse mesmo Rei que vós criastes; esse mesmo rei tirano é quem se firma no trono para vos vexar, para vos roubar e para vos maltratar.
Homens, o tempo é chegado para a vossa Ressurreição, sim para ressuscitardes do abismo da escravidão, para levantardes a Sagrada Bandeira da Liberdade.
A liberdade consiste no estado feliz, no estado livre do abatimento; a liberdade é a doçura da vida, o descanso do homem com igual paralelo de uns para outros, finalmente a liberdade é o repouso, e bem-aventurança do mundo.
A França está cada vez mais exaltada, a Alemanha já lhe dobrou o joelho, Castela só aspira a sua aliança, Roma já vive anexa, o Pontífice já está abandonado, e desterrado; o rei da Prússia está preso pelo seu próprio povo: as nações do mundo todas têm seus olhos fixos na França, a liberdade é agradável para vós defenderdes a vossa Liberdade, o dia da nossa revolução, da nossa Liberdade e da nossa felicidade está para chegar, animai-vos que sereis felizes para sempre.

Prelo
O Povo Bahiense e Republicano ordena, manda e quer que para o futuro seja feita nesta Cidade esse seu termo a sua revolução; portanto manda que seja punido com pena de morte natural para sempre todo aquele e qualquer que no púlpito, confessionário, exortação, conversação; por qualquer modo, forma e maneira se atreva a persuadir aos ignorantes, e fanáticos com o que for contra a liberdade, igualdade e fraternidade do Povo; outrossim, manda o Povo que seja reputado Concidadão aquele Padre que trabalhar para o fim da Liberdade Popular.
Quer que cada um soldado tenha de soldo dois tostões cada dia de soldo.
Os Deputados da Liberdade frequentarão todos os atos da igreja para que seja tomado inteiro conhecimento dos delinquentes: assim seja entendido aliás...
O Povo
Entes da Liberdade

Por isso é que, como sustentei em meu livro, esses chamados boletins sediciosos, como os classificaram o poder colonial e sua Justiça, que os revoltosos espalharam por locais de afluência pública na Bahia de 1798, embora manuscritos, sejam reconhecidos, 219 anos depois, senão como ato legítimo de imprensa, em face das precariedades técnicas vigentes, mas como dela alvissareiro embrião e prova coletiva de vontade redentora e modernizadora, para o Brasil, ainda injustamente pouco divulgada.
MUITO OBRIGADO.

*Florisvaldo Mattos é poeta, ensaísta e jornalista, professor aposentado da UFBA. Texto de palestra que constou da programação de Sessão Especial realizada no plenário da Assembleia Legislativa da Bahia, na manhã de 25/08/2017, às 09:30 horas, por proposta da deputada Fabíola Mansur, que a presidiu, em comemoração aos 219 anos da Revolta dos Búzios (1798).