Como sempre o Professor Florisvaldo Mattos aponta a história para nos dizer melhor, assim ele nos conta dos 219 anos da Revolta dos Búzios, uma luta pela liberdade do Brasil, que esquecemos; para tanto é preciso redizer e redizer para que entendamos a nós, o Brasil de hoje.Paulo Vasconcelos
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Florisvaldo Mattos UFBA |
Participando hoje, pela manhã, de magnífica e consagradora sessão especial da Assembleia Legislativa, presidida pela deputada Fabíola Mansur, em memória da Revolta dos Búzios, pelo transcurso de seus 219 anos, um marco da luta pela igualdade e liberdade no Brasil-Colônia, convidado a compor a mesa, com políticos, professores e luminares do movimento negro da Bahia, levei para ler na tribuna o texto abaixo transcrito, ao final solicitado para figurar nos anais da Casa, como registro.
Impressionaram o entusiasmo e a identidade do auditório para com o significado da iniciativa, expressados em cantos de hinos e fortes aplausos, especialmente para duas falas, a da professora Patricia Valim, especialista no assunto, e a de João Jorge Rodrigues, um ícone na luta pelo reconhecimento da importância do negro na sociedade brasileira.
Transcrevo abaixo o texto da palestra, agregando, como ilustração, a célebre pintura do francês Eugéne Delacroix, "A Liberdade Conduzindo o Povo" (1830), desde que o sumo das ideias e da pregação da conjuração baiana centrava-se na caudal de princípios que nortearam a Revolução Francesa, de 1789.
A COMUNICAÇÃO PÚBLCA
NA REVOLTA DOS BÚZIOS
Florisvaldo Mattos
Senhoras e senhores, bom-dia.
Devo a minha presença nesta sessão especial à deputada Fabíola Mansur, que me agraciou com o gentil convite para dela participar, em razão de ter eu escrito um livro, por sinal publicado pela Assembleia Legislativa, em convênio com a Academia de Letras da Bahia, em 1998, por ocasião das comemorações dos 200 anos do movimento revolucionário, que se chamou Revolta dos Búzios, objeto dessa iniciativa merecedora de aplausos.
Nesta obra, que recebeu o título de "A comunicação social na Revolução dos Alfaiates", deixando a parte essencialmente histórica da sublevação à competência dos historiadores, entre eles o professor Luiz Henrique Dias Tavares, seu mais destacado estudioso, preferi abordar, creio que pioneiramente, um ponto crucial que consistia em definir o papel da comunicação social na insurreição, optando pela designação mais repetida entre os estudiosos do fato histórico, hoje mais comumente chamado Revolta dos Búzios.
Sucedeu que, na última década do século XVIII, um grupo de pessoas em diversas situações de classe, mas preponderantemente da mais baixa escala social, intentou promover um levante, que visava libertar o Brasil-Colônia do jugo português, empunhando múltiplas bandeiras, tais como independência da Capitania, implantação da república, abolição da escravatura, igualdade para todos, livre comércio com as nações do mundo, interrupção do vínculo com a Igreja do Vaticano, instituição do trabalho remunerado, melhoria do soldo militar e garantias para os plantadores de cana, fumo e mandioca, assim como para comerciantes.
No que se refere às ideias dos que estavam engajados no movimento de libertação, esse caldeirão efervescente pressupõe um vasto campo de procedimentos durante certo período, em que imperaram as relações de comunicação, para obtenção de consenso em torno dos propósitos da intentada conjuração. No entanto, desbaratada a revolta, o resultado de tão elevada aspiração ficou na história como exemplo máximo de sofrimento, crueldade e tragédia, recaindo as penas de enforcamento, seguido de esquartejamento, sobre quatro dos envolvidos, dois deles soldados (Luiz Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas do Amorim Torres) e dois artesãos (João de Deus do Nascimento, mestre alfaiate, e Manoel Faustino dos Santos Lira, então oficial alfaiate, mas ex-escravo), livrando-se da severa punição um quinto personagem, Luiz Pires, também artesão, porque fugira, desaparecera sem deixar rastros.
Tem-se uma ligeira noção desse quadro com a descrição do que era Capital da Bahia em 1798, ano da derrocada do movimento. Tratava-se de uma sociedade de vizinhança, aquela em que, conforme define a sociologia, a relação entre as pessoas se estabelece por via predominantemente oral, isto é, por canais diretos de comunicação, com a escrita (canal indireto) funcionando como forma subsidiária, sujeita a graus de instrução e, por isso mesmo, constituindo-se patrimônio de poucos.
A estrutura social de então assentava-se no patriarcalismo e na economia escrava, em que pontificavam os senhores de escravos, dos engenhos, das terras, das minas e dos currais de gado e os lavradores proprietários, que só se distinguiam daqueles por não possuírem engenhos. Distribuía-se pelo intermédio, entre o senhor patriarcal e o escravo, um certo número de categorias: clero, magistrados, comerciantes, servidores da administração colonial, o chamado povo livre, os artesãos e os que ostentavam profissões qualificadas, além dos marginalizados da economia, como os mendigos, os desocupados e as prostitutas.
A educação formal se limitava ao ensino imposto e administrado pela Igreja, isto é pelos jesuítas, reduzindo-se ao estudo das sete disciplinas da chamada Ratio Studiorum, a que poucos tinham acesso. Não havia universidade, tampouco bibliotecas, livrarias e imprensa devido às rigorosas proibições impostas pela Coroa portuguesa, desde o início da ocupação do território. Segundo o maior estudioso dessa conjuração, o professor e historiador Luís Henrique Dias Tavares, os livros e outros escritos chegavam da Europa “nas cabeças, baús, amarrados de jovens brasileiros estudantes em Coimbra”, enquanto Nelson Werneck Sodré garante que vinham de contrabando, tudo às escondidas.
E quanto à população? Luiz dos Santos Vilhena, em suas "Cartas Soteropolitanas", situava a Capitania em menos de 200 mil habitantes, sendo desses 50 mil para o Recôncavo e menos de 60 mil para a Capital, o que praticamente iria se confirmar no censo realizado pelo Conde da Ponte, em 1807, com 51 mil para a Capital, sendo 28% compostos de brancos e 72% de pretos e pardos. Desses últimos sairia a esmagadora maioria dos participantes da planejada sedição, formada por escravos, artesãos, soldados e alforriados, mas também, embora poucos, por profissionais qualificados e religiosos, como o Padre Agostinho Gomes, que facultava livros à leitura, municiando o ideário dos descontentes com o statu quo da Colônia então identificados com os princípios dos revolucionários franceses de 1789.
O essencial desses princípios reflete-se no poema revolucionário intitulado "Décimas sobre a Igualdade e Liberdade", de criação atribuída a Salvador Pires de Carvalho e Albuquerque e, também, a Francisco Moniz Barreto, que o conjurado Manuel Faustino dos Santos Lira recitou, quando em depoimento o Juiz do Feito lhe perguntou se de sua letra tinha notícia, ouvindo do depoente, como resposta, que lera e decorara o poema, passando a repeti-lo oralmente. É este que agora leio, em versão crítica de ortografia atualizada.
DÉCIMAS SOBRE A LIBERDADE E IGUALDADE
Letra
Igualdade e Liberdade
No Sacrário da Razão
Ao lado da sã Justiça
Preenchem meu coração.
Décimas
Se a causa motriz dos entes
Tem as mesmas sensações
Mesmos órgãos, e precisões,
Dados a todos os viventes,
Se a qualquer suficientes
Meios da necessidade
Remir com equidade;
Logo são imperecíveis
E de Deus Leis infalíveis,
Igualdade e Liberdade.
Se este dogma for seguido,
E de todos respeitado,
Fará bem aventurado
Ao povo rude, e polido,
E assim que florescido
Tem da América a Nação
Assim flutue o Pendão
Dos franceses que a imitaram
Depois que afoitas entraram
No Sacrário da Razão.
Estes povos venturosos
Levantando soltos os braços
Desfeitos em mil pedaços
Feros grilhões vergonhosos,
Juraram viver ditosos,
Isentos da vil cobiça,
Da impostura, e da preguiça,
Respeitando os seus Direitos,
Alegres, e satisfeitos,
Ao lado da sã Justiça.
Quando os olhos dos Baianos
Estes quadros divisarem,
E longe de si lançarem
Mil despóticos Tiranos
Quão felizes, e soberanos,
Nas suas terras serão!
Oh! Que doce comoção
Experimentam estas venturas,
Só elas, bem que futuras,
Preenchem o meu coração.
No que respeita à minha análise do movimento, baseada em fontes primárias e secundárias, interessaram-me fundamentalmente as relações de comunicação que permitiram, seja no nível interpessoal, pela via oral, com predominância da conversa e do recado, seja no da comunicação manuscrita, com cartas, bilhetes e avisos, atuando em dois planos: no da formação da consciência política e revolucionária e no da preparação para o levante. E pude observar que todo o processo, toda a engrenagem conspiratória, claramente se consumira em atos de comunicação, havendo, no entanto, um momento de evolução nessas relações, determinante para a frustração e o fim trágico do movimento.
Por meio de técnica mais aperfeiçoada do uso da escrita, os rebeldes conseguiram de repente superar as limitações da comunicação de círculo privado entre pessoas, evoluindo para um nível mais amplo – o da comunicação pública, de caráter unilateral e indeterminado, mesmo em manuscrito. Foi o que aconteceu a partir da madrugada de 12 de agosto de 1798, quando a população da Capital foi surpreendida com uma série de textos manuscritos, em número de dez, afixados em locais públicos, para onde convergia grande número de pessoas, tais como portas de igreja, mercados de peixe, carne, frutas e legumes, cais do porto, portas de quartéis, tendas e oficinas de artesãos – onde em verdade efetivamente operava-se o cotidiano da cidade -, veiculando mensagens de conteúdo basicamente político-ideológico, em prol de uma reforma social, embora expresso de forma genérica. Era inegavelmente um claro avanço, com a comunicação processando-se em grau mais amplo de destinatário.
A partir daí, deflagrada a perseguição, que já vinha sendo cogitada em razão de denúncias levadas ao governador e até à Coroa em Portugal, 49 foram os presos acusados de conspiração, 40 deles distribuídos por ofícios de baixa qualificação ou simplesmente escravos, instalando-se, por conseqüência, dois processos regidos por dois desembargadores fiéis à Corte: um, Manoel Pinto de Avelar Barbedo, então Ouvidor Geral do Crime, para investigação do que se passou a chamar "boletins sediciosos", espalhados pela cidade, e outro, Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto, voltado para a reunião de preparação para o levante, que fora convocada para o então chamado Dique do Desterro, naquele tempo um lugar afastado e ermo.
Aqui reside um ponto crucial, a presença desses boletins sediciosos, que foram, para os revolucionários, como digo no livro, “o seu jornal, seu instrumento de divulgação de idéias e definições para um público mais amplo, que extrapolava o circuito da conspiração até aquele momento”.
Tendo em vista esse aspecto, sem fazer praça de originalidade, tomei os dez boletins sediciosos que se espalharam pela cidade como a mais expressiva e inovadora forma de comunicação indireta utilizada pelos participantes da conjuração, desempenhando, para a época, o legítimo papel de jornal manuscrito, por meio do qual os conjurados difundiram as suas idéias e projetos de reforma social, com sublevação da ordem constituída, para um público indeterminado – chamado por eles de Povo Bahiense -, com características de comunicação pública, unilateral e indeterminada, como seriam pouco depois – no Brasil e na Bahia – os jornais impressos.
Começando, primeiro, pela "Gazeta do Rio de Janeiro", autorizada por carta régia de Dom João VI, em 1808, a prática do jornalismo surgiria na Bahia, em 1811, com o pioneiro "Idade d´Ouro do Brazil", publicação de linha oportunamente submissa aos ditames do poder colonial, embora trouxesse inscritos em seu cabeçalho, com presumível toque de ironia, estes dois versos do poeta quinhentista português, Sá de Miranda;
"Falai em tudo verdades
A quem em tudo as deveis."
Só que, no Brasil-Colônia, as verdades proclamadas e aparentemente aceitas eram as do regime absolutista colonizador.
Motivos de uma das devassas que apuraram a conspiração, esses dez boletins sediciosos visavam, em essência, alcançar um público, uma coletividade de pessoas, em apoio do movimento. Dirigidos ao Povo Bahiense, cinco eram encabeçados como Aviso, um como Nota e quatro como Prelo, palavra que sintomaticamente fazia ressoar a técnica de impressão inaugurada por Gutenberg, que deu origem a toda a uma consagrada cultura editorial e gráfica no Ocidente.
Dois desses boletins vão abaixo transcritos na versão crítica de ortografia atualizada, um intitulado Aviso ao Povo Bahiense, o outro, Prelo.
Aviso ao Povo Bahiense
Ó vós Homens Cidadãos, ó vós Povos curvados e abandonados pelo Rei, pelos seus ministros.
Ó vós Povos que estais para serdes Livres, e para gozardes dos bons efeitos da Liberdade; Ó vós Povos que viveis flagelados com o pleno poder do Indigno coroado, esse mesmo Rei que vós criastes; esse mesmo rei tirano é quem se firma no trono para vos vexar, para vos roubar e para vos maltratar.
Homens, o tempo é chegado para a vossa Ressurreição, sim para ressuscitardes do abismo da escravidão, para levantardes a Sagrada Bandeira da Liberdade.
A liberdade consiste no estado feliz, no estado livre do abatimento; a liberdade é a doçura da vida, o descanso do homem com igual paralelo de uns para outros, finalmente a liberdade é o repouso, e bem-aventurança do mundo.
A França está cada vez mais exaltada, a Alemanha já lhe dobrou o joelho, Castela só aspira a sua aliança, Roma já vive anexa, o Pontífice já está abandonado, e desterrado; o rei da Prússia está preso pelo seu próprio povo: as nações do mundo todas têm seus olhos fixos na França, a liberdade é agradável para vós defenderdes a vossa Liberdade, o dia da nossa revolução, da nossa Liberdade e da nossa felicidade está para chegar, animai-vos que sereis felizes para sempre.
Prelo
O Povo Bahiense e Republicano ordena, manda e quer que para o futuro seja feita nesta Cidade esse seu termo a sua revolução; portanto manda que seja punido com pena de morte natural para sempre todo aquele e qualquer que no púlpito, confessionário, exortação, conversação; por qualquer modo, forma e maneira se atreva a persuadir aos ignorantes, e fanáticos com o que for contra a liberdade, igualdade e fraternidade do Povo; outrossim, manda o Povo que seja reputado Concidadão aquele Padre que trabalhar para o fim da Liberdade Popular.
Quer que cada um soldado tenha de soldo dois tostões cada dia de soldo.
Os Deputados da Liberdade frequentarão todos os atos da igreja para que seja tomado inteiro conhecimento dos delinquentes: assim seja entendido aliás...
O Povo
Entes da Liberdade
Por isso é que, como sustentei em meu livro, esses chamados boletins sediciosos, como os classificaram o poder colonial e sua Justiça, que os revoltosos espalharam por locais de afluência pública na Bahia de 1798, embora manuscritos, sejam reconhecidos, 219 anos depois, senão como ato legítimo de imprensa, em face das precariedades técnicas vigentes, mas como dela alvissareiro embrião e prova coletiva de vontade redentora e modernizadora, para o Brasil, ainda injustamente pouco divulgada.
MUITO OBRIGADO.
*Florisvaldo Mattos é poeta, ensaísta e jornalista, professor aposentado da UFBA. Texto de palestra que constou da programação de Sessão Especial realizada no plenário da Assembleia Legislativa da Bahia, na manhã de 25/08/2017, às 09:30 horas, por proposta da deputada Fabíola Mansur, que a presidiu, em comemoração aos 219 anos da Revolta dos Búzios (1798).