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quarta-feira, 23 de agosto de 2017

..o diabo, ah, o diabo mora nos detalhes..Micheliny Verunschk.(capturas do Facebook)


para dizer sobre ela, copio seu estilo....admiro esta criatura, não só como pessoa ,onça, leoa, como grande escritora e poetisa.Agora flagro-a no facebook, em que suas palavras são as minhas; assim além de tudo pensamos próximos, aqui vai...
paulo vasconcelos

Micheliny Verunschk -onça verunschk

por que é importante a demarcação de territórios da literatura escrita por pessoas que vêm das fileiras de alguma minoria, se não é o fato de ser minoria que lhes garante qualidade (qualidade literária, essa categoria móvel segundo os interesses da crítica)? porque é justamente o fato de pertencerem a alguma minoria que, de partida, as invisibilizam. a qualidade literária do livro escrito por uma mulher ou negro ou índio ou homossexual só interessa se conseguem driblar o "crivo do cânone". o livro escrito por um homem, branco, ocidental, de partida não precisa desse jogo de corpo.
anos atrás eu dizia "não existe literatura feminina, negra, indígena, gay, dos anjos. existe literatura". isso no mundo ideal. no mundo real é preciso etiquetar para excluir. a literatura feita por pessoas vindas de minorias precisa, no mundo real, estar sempre justificando sua existência, precisa sempre pedir licença para estar onde quiser estar. para que eu escreva bem é preciso que eu escreva apesar de. apesar de ser mulher, por exemplo. ou que o autor X esconda sua cor, sua identidade.
quando Manuel da Costa Pinto fala, por exemplo, que os autores convidados por essa Flip atendem a expectativas extraliterárias o que ele quer dizer, sem rodeios, é que aquele lugar não deveria ser ocupado daquela forma ou "o que eles estão fazendo ali?". uma questão como essa nunca seria colocada para autores homens, brancos ou que correspondam às expectativas do "crivo do cânone".
o diabo, ah, o diabo mora nos detalhes.


*Micheliny Verunschk (RecifePernambuco1972) é uma poetisa, romancista e historiadora brasileira.

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

EXISTEM MINORIAS ONDE HÁ SEMPRE MAIORIAS? (capturas do Facebook)



Olá, sempre é bom flagrar bons escritores que tem algo a dizer de atual e que atendem aos desejos do social, Prof. Dr. Florisvaldo Mattos-  UFBA, isto no seu facebook...   https://www.facebook.com/florisvaldo.mattos
Paulo Vasconcelos
...
Recebo por e-mail (como talvez dezenas de outros destinatários) este alentado texto do austríaco-baiano Reinhard Lackinger, que, desafiando êxtases sensoriais, aufere o prazer de degustar todas as tardes um chope gelado numa luminosa calçada, mirando o pôr-do-sol do Porto da Barra, que é só um espetáculo de luz e cores, no qual põe em discussão o significado e a veracidade do termo "minorias", talvez a palavra mais presente em debates socioculturais da atualidade brasileira, depois de corrupção, ao que deduzo, divisando nisso uma contradição, desde que o que em geral se chama de "minorias" são na verdade e na essência maiorias. Por exemplo (quase transcrevo o que ele diz): como aceitar que 80% da população de Salvador, composta de negros e afrodescendentes, possa ser classificada como "minoria"? Dá realmente para pensar.

Sem se alçar patrono de um debate, creio que a instigação de Lackinger merece, além de leitura, detida e serena, apreciação e reflexão e, por isso, resolvi reproduzi-la abaixo, em compartilhamento. Portanto, enrosquem-se nela e se manifestem.

Quando as Minorias tendem a ser Maioria
Reinhard Lackinger
Confesso ter dificuldades quando o assunto é "minorias"! Principalmente em se tratando de indígenas e negros deste nosso Brasil!
Pindorama estava cheio de indígenas de tudo que era tribo. Por essa razão podemos falar em minorias dos erroneamente chamados índios, só depois de boa parte da chacina, do genocídio ter sido consumado!

Por que será que mesmo com toda essa matança sobraram mais indivíduos nativos no Brasil do que na América do Norte? 
Terá sido por causa do clima inóspito nas florestas amazônicas, os pantanais cheios de répteis, piranhas, jacarés, onças e insetos transmissores de malária?

Será que foi porque nossa gente desde sempre preferiu deitar-se com as índias em vez de matar aborígenes? É pelo menos essa a ideia que Pero Vaz de Caminha nos passou!
Minhas dúvidas acerca desse tema não param por aí. 

Quantas vezes já não vimos reportagens de TV mostrando disputas por de terras indígenas, tendo o fazendeiro invasor quase branco mais cara de índio do que os supostos nativos?

Quantos rostos com traços indígenas costumamos encontrar diariamente nas ruas, nos shoppings, nos escritórios e no congresso? Há minorias e mais minorias ao nosso redor do que imaginamos.

Se os EUA têm gente famosa oriunda de povos nativos, nós também os temos!
Na música por exemplo, que me ocorre neste momento. Lá eles tem os saudosos trombonistas do jazz Kid Ory e Jack Teagarden. Nós temos o nosso Rei Roberto Carlos. O rosto e os cabelos de nosso pop star de Cachoeiro de Itapemirim não me deixa mentir. Repare se as feiões dele não se parecem com as de um cacique, de um pajé ... ou melhor, com as de uma "squaw"!

O finado cacique do povo xavante e deputado federal Mário Juruna tem sido minoria absoluta no congresso nacional. 
O talvez primeiro cidadão e político brasileiro a denunciar as maracutaias e ladroagens de congressistas. Ele quase perdeu o mandato por ter tido essa coragem!
Não deve ser nada cômodo e fácil pertencer à minoria indígena do Brasil.
Marcos Terena, aviador, líder indígena e escritor, quando ainda estudava, chegou a declarar-se descendente de japonês, segundo ele próprio confessou diante de câmeras de televisão.

Enquanto um número cada vez mas reduzido e menor pode justificar o uso da expressão "indígena", o que dizer dos negros brasileiros?
Como uns 80% dos habitantes da Roma Negra, de Salvador podem ser considerados "minoria"?
Ouso arriscar um palpite e sugerir que 99% desses 80% permanecem invisíveis aos olhos dos que se julgam brancos. Sobra assim apenas uma minoria de negros com os quais nós nos relacionamos diariamente e em nosso círculo mais íntimo. Com a crescente falta de serviçais e empregados domésticos, essa "minoria" tende a ficar ainda mais reduzida. 
Outro detalhe importante! Nem todos os negros pertencem à mesma minoria!
Uns vivem cercados por todo tipo de cuidados, outros convivem com urbanização, ordem pública e situação familiar precárias. 

Deve ser por isso que o sistema de cotas para negro e índio ter acesso à universidade não contempla quem tenha feito o primeiro e segundo graus em escolas particulares.

Considero cotas para acesso a instituições de ensino e o serviço público coisa séria, embora saiba que qualquer sistema, por mais bem elaborado que seja, é injusto! Mais injusto porém seria manter o ônus das desigualdades sociais apenas nas costas dos negros e mestíços!
Ações afirmativas devem importar mais para quem pertence a alguma minoria. 
Assunto cheio de opiniões conflitantes. Direitos iguais para mulheres, transgêneros e todos que se assumem como "minoria". Inclusive algum imigrante acidental vindo dos Alpes austríacos, residindo no Brasil há quase 50 anos.

E por falar em cotas ... Na época de Hitler e do nazismo e desde 1933 havia o tal "passaporte genealógico", o "Ahnenpaß". Quem conseguisse comprovar a "limpeza étnica", ou seja, de não ter nenhum judeu, cigano ou outro parente de origem "suspeita" na árvore genealógica até o ano 1800 conseguia obter esse documento tão desejado por uns. Ele permitia por exemplo que os filhos da família com "Ahnenpaß" estudassem em instituições de ensino especial que visavam formar oficiais para o Terceiro Reich que haveria que durar 1.000 anos. Os arianos eram para ser maioria, imagino! Não sei dizer se os tais arianos e alemães com "Ahnenpaß" chegaram realmente a ser maioria no povo alemão e austríaco. Duvido muito! Só sei que esse nefasto desvario durou apenas pouco mais de uma década.
O encontro de minorias costuma promover tensões, mas também alta cultura. Sem choques de costumes diferentes não há alta cultura! Percebemos isso em cidade que em dado momento tiveram um forte afluxo de imigrantes. Foi assim com a capital do Império Austro-Húngaro, Viena, com Nova Iorque e também com São Paulo.
Há minorias nas respectivas colônias no cone sul do Brasil que num primeiro momento visavam apenas a sobrevivência. 
Quando a fome deixa de ser o inimigo comum, as aspirações dessas minorias podem sofrer uma curiosa metamorfose, podendo desencadear até o desejo de separar-se do país que os acolheu. Foi mais ou menos assim com os diversos "países coroa", as tais "Kronländer" que haviam constituído a Monarquia do Danúbio, com a antiga Iugoslávia e com a União Soviética. Por enquanto, o sucesso e o destino da União Europeia está incerto.

Penso que o desejo das minorias - visíveis ou não - é a perpetuação de seu idioma, de sua cultura! Da mesma forma que as monoculturas rurais e urbanas são danosas a um país, passar o trator por cima de diversidades humanas fatalmente termina em tragédias e no crescente fascismo que assistimos hoje de camarote.
Quanto mais miscigenação, mais cultura, menor chance do indivíduo sentir-se superior ao próximo e menor possibilidade da volta do "nazifascismo"!
Salvador, 16 de agosto de 2017

Ilustração: "Retratos da Bahia", de Carybé.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

A melodia às avessas de Samarone Lima ....por :Rev Brasileiros



De Crato a Recife, conheça o poeta da memória e da música silenciosa



Todo poema tem a missão de provocar no leitor algo que o incomode, que o faça se perder (…). Como diz Juarroz:
‘A poesia é o maior realismo possível’. Ela salta o nome das coisas, para nomeá-las de outra maneira. Desnorteia. Puxa o tapete”
Samarone Lima é um cavalheiro, jovem-antigo, pesca fatos como jornalista e embrulha palavras com sua poesia. Seu lirismo se debruça sobre os mais diversos acontecimentos e os transforma em versos, embebidos de uma política do subjetivo sobre a qual alisa sílabas, dá contorno à palavra e consistência ao poético.
O professor e crítico literário Lourival Holanda escreve no posfácio do primeiro livro de poesias de Samarone, o duplo A Praça Azul & Tempo de Vidro (Editora Paés, 2012): “Na agreste figura dele, a poesia surpreende como a floração de um mandacaru… O poema de Samarone vai na contramão do consensual e, porque um hino à memória, guarda o mel dos momentos mágicos num processo de retenção sem pressa… E assim o poeta reconstrói sua delicada geometria de esplendores…”.
Sama nasceu, em 1969, no Crato (CE), mas desde 1987 vive em Recife. Tem trabalhado em diferentes projetos literários, como os livros-reportagem  (1998) e Clamor (2003), que estão sendo adaptados para cinema, e os livros de crônicas Estuário (1995) e Trilogia das Cores (2013). Só recentemente passou a publicar sua obra poética. Seu livro mais recente é O Aquário Desenterrado (Editora Confraria do Vento, 2014). Samarone recebeu a Brasileiros em uma livraria em Recife, onde batemos o papo a seguir.

Brasileiros – Fazer poesia é um ato político?
Samarone Lima – A literatura é sempre um ato político. E, se for sutil, abre mais espaços em pensamentos fechados. A palavra sempre me abriu caminhos. Como sempre publiquei muito as crônicas no meu blog (estuario.com.br), a quantidade de leitores era enorme. Fui publicando os poemas de forma quase clandestina em outro blog (quemerospoemas.blogspot.com). Era um problema existencial. De um lado, eu não queria muito mostrar os poemas. De outro, me lamentava ser conhecido apenas como cronista, jornalista. O fato de um leitor ter me encontrado e instigado a mostrar a poesia foi determinante. Devo isso ao amigo Arsênio Meira Jr., grande amante e conhecedor de poesia.
Brasileiros – Um de seus temas é a solidão na infância, a adolescência, as…
S.L. – … As muitas coisas. A solidão da infância, as dezenas de casas onde vivi, do Crato, no Ceará, passando pelo Maranhão, depois Fortaleza, Recife, São Paulo. Tentei apenas decifrar meu mundo de forma poética. A poesia pode também ser memorialista, mas não tem uma linha reta como na prosa.

Brasileiros – Você tem um memorial poético bem exposto na sua poesia… mãe, primos, etc.
S.L. – No meu primeiro livro duplo, temos as duas vertentes. A Praça Azul traz poemas soltos, com aparições da memória. Em Tempo de Vidro, fiz uma espécie de ritual da memória, indo aos antepassados, passando por mim, chegando novamente aos velhos. Em O Aquário Desenterrado, deixei que tudo viesse da forma mais pura, aberta. Cito nomes de tios, falo dos primos, do meu pai, dos irmãos. Me senti muito bem acompanhado. Nós e nossas dores, alegrias, fracassos, como uma grande constelação.

Brasileiros – O poeta tem o que se chama inspiração ou essa é uma palavra oca?
S.L. – Acredito que tenho, sim, dias mais inspirados. A escrita sai quase de uma fonte cristalina, basta se agachar, juntar as mãos e beber dela. Mas há dias duros, de luta mesmo, de frio, cansaço, solidão. Neste caso, recorro aos diários. Tenho dezenas de cadernos, que sempre me trazem alguma surpresa, uma frase, um tema. Cadernos velhos são meus fertilizantes.

Brasileiros – Quais autores brasileiros são para você um ponto de partida ou de chegada?
S.L. – Sendo meio óbvio, Murilo Mendes e Jorge de Lima. Mas tenho minha ramificação poética com outras fronteiras. Roberto Juarroz e Juan Gelman (argentinos), T.S. Eliot (norte-americano/inglês) e o abismo que é o Vicente Huidobro (chileno).

Brasileiros – Você tem uma relação mística, sagrada, com o exercício da poesia?
S.L. – Sim, creio, porque a palavra, em sua raiz original, tem o sagrado e o dom. Eu realmente trato a poesia como algo sagrado. O dom é outro aspecto, que tem o mistério rondando. Nunca sei de onde um poema vem, nem para onde vai. Tento esse exercício da poesia com as coisas cotidianas, os sobressaltos, impasses, desenganos, frustrações. Não é por acaso que meus parentes são personagens de vários poemas, eu mesmo apareço e me deixo desnudar. Vou construindo uma poesia que sirva para dar conta da minha vida, mas tentando ir sempre ao encontro do leitor.

Brasileiros – E qual seria uma definição de poesia para você?
S.L. – Poesia, para mim, é o descolamento silencioso, rastejante da palavra em relação ao objeto contemplado. Um descolamento da palavra de seu significado habitual. Eu busco essa renúncia. Não apenas para sentir-me completo, mas também para conservar a tradição milenar de entender a poesia como uma espécie de música quase silenciosa. Uma melodia às avessas. Como diz um poeta que me é caro, o argentino Roberto Juarroz, a poesia é um “visionária e arriscada tentativa” de levar o homem ao espaço do impossível, que às vezes se parece também com o espaço do indizível. É meu testemunho, minha obsessão. De novo Juarroz: “Uma peregrinação de meu destino através da linguagem”.

Brasileiros – Você vê seus versos pelo buraco da fechadura, como diria Nelson Rodrigues?
S.L. – Meus versos não são próprios (exceto um ou outro) para serem lidos em voz alta (não cabem na “declamação” porque isso guarda um elemento teatral). Há algo de contido, até porque tinha uma timidez assombrosa em mostrá-los. Quem me salvou do anonimato poético foi o amigo Arsênio Meira Jr., que fez uma seleção do primeiro lote que publiquei silenciosamente na internet (quemerospoemas.blogspot.co). É um despojamento, um desnudamento. Já tive oportunidade de fazer algumas raras leituras, mas prefiro em voz baixa, quase um sussurro, até porque me emociono quando vou ler. Essa emoção que me leva ao engasgo, é o que tento levar ao leitor. A poesia que me comove e que tento escrever se move pela completude amorosa, compreendendo, sobretudo, a memória e o exílio das minhas desarmonias, que são muitas.

Poema inédito
Manual de espera e solidão
Como no silêncio sem rastros
De um animal desvairado
Com seu cheiro difícil de esquecer
de tão próximo.

Ou como o espaço que lhe damos
Entre os ossos
Dessa ausência doentia
De tudo o que se quer.

Como se aquilo que se perde
Não virasse outro abismo –
O de ter sido.

E mesmo assim, se promulga a voz
Do absoluto desejo.

Tão imaculado, tão limpo, tão puro
Que sequer precisa de um nome
Para saber-se vivo.
Brasileiros – A relação entre prosa e poesia?
S.L. – Bem, enquanto a prosa tem um sentido lógico, definível, a poesia é alógica, evoca sentidos vários, não tem medida, exceto aquela que enxergamos. Talvez por isso os meus versos tenham demorado tanto a serem publicados. Eu desejava que eles tivessem a força de um filho há muito esperado, e que depois segue seu caminho. Eles ainda são muito duros, mas até a dureza tem algo de contido. A Praça Azul & Tempo de Vidro foi o livro possível, mas que resultou em uma espécie de alívio. Fiz minha inauguração. No final de 2013, veio O Aquário Desenterrado. Vi que estava com a alma mais livre, que podia dizer de forma mais intensa o que me era caro. As minhas contradições, memórias, minha vida feitas de tantas casas, tantas cidades, vivências. Um desaprumo que a poesia me possibilita refazer. Desejo apenas seguir nesta jornada pela poesia, sem nenhuma pressa.

Brasileiros – A busca pela completude amorosa é a qualquer preço?
S.L. – Não. Há condições. Logo no primeiro poema de O Tempo de Vidro, isso soa claro, como neste trecho: “Quando voltei/Aos seios de minha mãe/Morri de sede./Minha parte no mundo/Era destinada ao desconhecido/Que sempre fui”. Isso não é nem uma introdução de poema, isso é uma recomendação a mim mesmo. Lá, já nas origens, tudo se configurava. No meio do espanto, me vi escrevendo cada vez mais poesias, fazendo um diário de minha própria trajetória, tentando me reconhecer e me perdoar. Não sei se consegui, porque o perdão é uma tarefa para a vida inteira.
Todo poema tem a missão de provocar no leitor algo que o incomode, que o faça compreender, ou mesmo se perder, pois afinal de contas, perder-se também requer um roteiro, um caminho, um mapa necessário para subirmos novamente a montanha. Como diz Juarroz: “A poesia é o maior realismo possível”. Ela salta o nome das coisas, para nomeá-las de outra maneira. Desnorteia. Puxa o tapete, escancara o coração. Deve nos fazer pensar. Não lembro agora o autor de uma frase belíssima (não sei se foi o Jean Cocteau), que perguntou o seguinte: “– Se sua casa estivesse pegando fogo, o que você salvaria primeiro?”. Eis a resposta: “– O fogo”. Assim entendo e vivo a poesia. Uma urgência enlaçada pela afeição desesperada.

*Arsênio Meira de Vasconcellos Junior é bacharel em Direito, ocupa um cargo público e é um viciado em poesia e incentivador da poesia brasileira.

Um poeta, filósofo fala da poesia humana de um Futebol (capturas do Face)

Flagro, um filósofo, poeta a falar e a tecer a vida numa simplicidade e clareza que nos dá vivas a vida. Elton, é assim, uma suavidade de humanidade que nos faz olhar e viver com mais força.Conheço-o e testemunho esta poesia ambulante que me impressiona, e por cima, ainda, é um especialista em Manoel de Barros,  anexa-o a Deleuze, num grande crochê de poiesis, também poderá! Paulo Vasconcelos


Sou filho mais velho de muitos irmãos. Porém, com seis para sete anos uma amizade me fez experimentar o inverso , pois fiz amizade com um garoto chamado Edinho, que era cerca de 4 anos mais velho que eu. Ele não era apenas meu melhor amigo, ele era também o irmão que eu escolhi para ter. O irmão mais velho do irmão mais velho, e eu era para ele o irmão mais novo que ele queria ter. Sobretudo para jogar bola, Edinho era louco por futebol . Ele foi, àquela época, meu herói. Eu o imitava em tudo.Só havia um problema:Edinho era botafoguense. Meu pai era flamenguista roxo. Creio que era nesse único ponto que meu pai temia minha amizade com aquele garoto. Ainda mais porque eu já começava a me dizer botafogo. Ganhei até uma camisa desse time (dada, é claro,pelo Edinho).

Então, meu pai me chamou para ir ao Maracanã velho Maracanã... Fomos assistir a um flamengo e bonsucesso, se não me falha a memória.Àquela época, os times do subúrbio tinham boas equipes.
O maracanã estava cheio:40 mil pessoas, no mínimo. Na verdade, eu só estava interessado nos doces e biscoitos que meu pai estava pagando para me agradar. Mas ele tinha um plano...

 O jogo não estava fácil.O primeiro tempo terminou 0x0. Até que aos 15minutos do segundo tempo começou a se aquecer um jogador do flamengo. Ele era muito jovem, um menino ainda. Quando tal garoto se preparava para entrar, meu pai me disse algo em tom de ordem, tom este que não era comum ouvir de sua boca. Ele me disse: “meu filho, não tire os olhos desse garoto....”. Eu nada disse , apenas confrontei mentalmente a frase que ouvi do meu pai com a imagem que meus olhos viam, e não conseguia ver sentido naquela ordem, ainda que cheia de esperanças.Sim, havia nas palavras do meu pai uma expectativa, como se ele tivesse me trazido ali para ver aquele momento. Contudo, a imagem que eu via era uma decepção: o garoto era magrinho, franzino mesmo, o uniforme o engolia, literalmente. E ainda por cima, pensei comigo, “ele é loirinho! O flamengo nunca teve jogador bom loirinho....”
Até que o garoto tocou na bola.Foi um simples toque, uma dominada, e o mundo passou a ter outro sentido. 

Uma qualidade não se explica pelo acúmulo de quantidades. Se a sopa é ruim, ela não melhora com o acúmulo de colheradas. Mas se a sopa é boa, uma simples colherinha dela já nos faz sentir que ela é boa.Ele depois ergueu a cabeça como um rei e fez um lançamento.Que lançamento!...1X0. Ele havia antevisto algo que ninguém viu.Ele anteviu o acontecimento em sua virtualidade. Logo depois ele mesmo fez um segundo gol e nos deu a vitória. Sim, eu já falava “nós”, e não mais “eles” ,ao pensar no flamengo.

O nome desse jogador ainda garoto era Artur, o mesmo nome do rei protagonista de fantásticas narrativas criativas ,mais do que de guerras sangrentas .Mas todos já começavam a chamá-lo por um nome simples, como simples é todo grande. Chamavam-no simplesmente Zico. Aquele foi um dos primeiros jogos profissionais dele. Como meu pai frequentava muito o Maracanã, já o tinha visto jogar em alguma preliminar. Ao fim do jogo, retornava o povo às ruas, cantando nosso rei ( eu estava convertido...rs...).Baudelaire dizia: “Seja um poeta, mesmo em prosa”.Zico ampliou essa ideia e nos ensinou : “seja um artista, mesmo com a bola”.

E enquanto meu pai me conduzia pelas mãos na saída, eu olhava para ele e, em silêncio, dizia para mim mesmo: “Meu pai sabe tudo...”
* Possui Mestrado em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1997), Mestrado em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1995) e Doutorado em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2004). É professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e professor adjunto da Faculdade de Filosofia de São Bento

domingo, 13 de agosto de 2017

CACHOEIRA (DE BEVERLY HILLS PARA SANTO AMARO DA PURIFICAÇÃO- BA)




O vapor de cachoeira
Não navega mais pro mar.
Levanta a corda, bate o búzio,
Nós queremos navegar.
Ai, ai, ai, nós queremos navegar.

E fui, no ônibus, como um barco, meio rodando e navegando, queria pegar no recôncavo e olhar e dormir num e noutro, sim, no convexo também.
Viajar é entreter-se para mudar o cenário e assim para entrevistar meus olhos com o mundo, com as pessoas e meu nariz, boca também, Viagem é poemar vividamente, foi o caso de ir a Cachoeira-BA. Já tinha um tempo que eu focava isso e quis realizar, não era só ir à Cachoeira da Bahia, era a ideia minha que inventei, seria mais minha e me sentiria à vontade dentro de você, conduzindo seu corpo e ás vezes se sobrepondo. Pena que não tem mais o vapor... seria demais.
Lá deitei-me sobre o Brasil no acolchoado de sua aura, brisa, calor cheiro e afago do seu povo. Que tem água no meio da cidade, e tem verdes, cachorros andando pelas ruas soltos, uns mancando outros normais, e as pessoas o mesmo. Andando sem saber pra onde, olhando água como se olhasse o mar ou a pedra, sei lá, gostei.

Quatro rodas sim
Há uma diferença entre viagem de carro, avião e ônibus, especialmente para o recôncavo baiano, onde as opções são o carro ou ônibus, partindo de Salvador. Além de conhecer a brasilidade da região, de beleza estrondosa e não sei se bom ou mal, mas ainda se conhece pouco pelo turismo. Fui no início de junho de 2017 à Cachoeira-BA.
Viajar-sair é o que dar para olhar mais com atenção.
A viagem propicia uma vista bacana: do campo pela janela do ônibus, projeta uma imagem telúrica que me chama para a infância e meu imaginário rural. Vejo paisagens, personagens de uma cor brasileira inacreditável. Curto cheiros, estética do vestir, a fala, afora músicas, comidas etc. Isto tudo difere do Sudeste, São Paulo, onde hoje moro, aliás me divido.
O ônibus partindo de Salvador, vai parando em cidades do percurso, onde se tem uma vista parcial das mesmas, mas colhe-se algo dos passageiros que embarcam e desembarcam num entra-e-sai constante — o que faz a viagem ter um tempo de percurso mais longo que o carro, mas o aprendizado é demais.
A chegada à Cachoeira nos surpreende pela simplicidade, cheiro da umidade, vinda do rio e das brumas marinhas. O rio Paraguaçu é o divisor entre duas cidades: Cachoeira e São Feliz, que tem uma ponte em ferro. Essa ponte, Imperial D. Pedro II que liga a cidade a S. Felix, foi construída pelo imperador 1865, não tinha os Magalhães ainda. (rss)

Um rio e várias histórias

A cidade foi imponente entre séc. XVIII e XIX, face o escoadouro de produtos do recôncavo baiano com destaque absoluto em todo recôncavo.
O casario barroco é de uma imponência como uma cidade dos barões do cacau, cana, tabaco, fumo etc; muitos bem recuperados, outros não.
A cidade é patrimônio nacional, mas carece de cuidado, mesmo assim tem sua imponência e ergue-se diante do rio Paraguaçu com altivez. São igrejas, paço municipal, e pequenos-grandes casarios como o Convento, o Passo Municipal, o Centro Cultural da Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte, com evento em agosto que atrai um fluxo intenso de turistas. É algo felliniano, mas é brasileiro negro e é lindíssimo. Há muito mais: Cachoeira é a micro gênese dos cultos afro-brasileiros, lá encontram-se mais de 50 terreiros.
Cachoeira tem seus personagens fulgurantes desde Caramuru, Augusto Teixeira de Freitas, Ana Nery, Dona Dalva Damiana, charuteira da fábrica Suerdieck (do grupo de samba de roda da Suerdieck, também é integrante da irmandade da Senhora da Boa Morte), Manoel Traquilino Bastos — maestro e instrumentista — e Edson Simões Filho criador do Jornal A tarde, entre outros.
As pousadas são parcas, mas quero destacar a Identidade Brasil, localizada na praça 25 de junho, onde se tem vista para um conjunto arquitetônico em boa conservação. Esta pousada que nos recebeu tem uma poeta, poeta de cabeça, não do verso, e sim da estética dos objetos que lhe cerca e conserva, afora o trato do casario, maravilhosa mulher que tornou-se cachoeirense mesmo sendo paulistana. Apaixonou-se pela cidade e sua pousada é de um feitiço que agrega toda uma cultura regional, especialmente nas suítes e quartos e parte comuns da casa, afora um padrão gourmet requintado mas sem petulâncias das bobagens gourmecidas; é de se visitar. Afora isso, ela, a proprietária, faz passeios com seus hóspedes pelas cidades e indica passeios de barcos pelo Paraguaçu imenso.

A feira é festa: compra-se para comer e beber, mas tem mais para ver

A feira de Cachoeira – aos sábados e seu mercado são outro atrativo espetaculoso, sim espetaculoso mesmo, tem de tudo e mais gente que fala e diz sua história e canta e ri, vendendo de frutas verduras, carnes, peixes, alumínio, panelas, comidas — pratos feitos —, e mais pamonha, canjica, amendoim cozido, queijos, licores, roupas; é um espetáculo a ser vivido. Além disto os pregões de chamados para as compras, afora os tratamentos de: bom dia meu compadre, meu patrão... Ai, Rio, quem sou eu para ser patrão!
A Praça Central, vestida de bandeirinhas coloridas, já de plásticos, para o São João é outro fato cenográfico, compondo com o rio bares e botecos a margem um belo cenário; as bandeiras ao reverenciar o vento produzem um marulho como se fora do mar, é vasto, lindo e tem acarajé, cocada da Elizete e boa prosa, maniçoba agora no escondidinho (prato).
Destaque-se no casario pequenas lojas, farmácias, roupas com sobrenomes de famílias como Pereira. Tem de um tudo, mas os licores são demais, encontrei um inusitado: Jambo, amendoim e graviola, sem se falar no Jenipapo e café. São famosos seus licores.

Adeus, meu Santo Amaro
Eu dessa terra vou me ausentar 
Eu vou para Bahia 
Eu vou viver, eu vou morar 

Bom, mas vamos a volta da viagem: no mesmo trajeto passamos na ida por Santo Amaro da Purificação, de dona Quino e Betânia. Paramos na rodoviária, que decepção! Fazemos um imaginário pela boca da canção em Betânia, mas a coisa é outra, mas tem lá seus encantos escondidos.
O que nos chamou a atenção foi o vendedor de água que oferecia água mineral, que como tantos outros adentram ao ônibus para vender comida etc...
— Água mineral geladinha diretamente de Beverly Hills para Santo Amaro, tome guarde de lembrança, e coma milho cozido assado para tirar o amargo dos americanos da boca, mas água é boa!
Chamei o vendedor e perguntei o óbvio: aqui é a terra de Betânia? Ele disse sim, vulga Dona Maria, e e sou fã dela, e ele disse: eu não por acaso? Adoro Betânia, Mabel, Rodrigo, Caetano; está bom, prossegui de volta, ficou a imagem de cachoeira e a água de Beverly Hills, como lembrança de Santo Amaro.

Adeus, meu Santo Amaro
Eu dessa terra vou me ausentar 
Eu vou para Bahia 
Eu vou viver, eu vou morar 

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