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quinta-feira, 10 de setembro de 2015

No meio do caminho tem um anjo torto







Não é preciso data, semana, tempos para falar de poesia quando o poeta é Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
Um pássaro flautista no quintal caçoa de meu verso modernista” (…) (A Paixão Medida, 1980)
Também poderá anjo brasileiro voar sobre montanhas de minas? Haveria de abrandar-se entortando-se na escrita.
Eta vida besta, meu Deus!” (Alguma Poesia,1930)
Não precisamos de datas, semanas, tempos para falar de poesia, quando o poeta é Drummond. Ele não é só mineiro e carioca. Ele é brasileiro.
Carlos gritou o sentimento do mundo no jornal, no livro, em seus passeios a pé. Ele é o poeta que nos ensina a sentir a palavra e seus ganchos. Ele falou do amor, da indefinição do homem, da política e outras assertivas humanas. Eis um poeta do mundo, do Sentimento do Mundo.
Precisamos lê-lo. Melhor que criar o dia “D” para molhar as palavras no ferropoético do Brasil e nunca se esquecer dos brasileiros e da sua vida…
Lutar com palavras é a luta mais vã… Mas lúcido e frio… E tento apanhar algumas para meu sustento num dia de vida.” (O Lutador, 2008)
Nenhum poeta foi tão múltiplo absurdo, férreo geopolítico e de antevisões de um Brasil, seja em sua poesia, contos, crônicas, seja no gênio jornalístico em que anexou, apurou e depurou sua poesia. Carlos arquitetou as palavras no simples e ligou o passado, o presente ao futuro, sem jamais desaquecer o amor e as minas humanas que estão em toda parte do Brasil, dos Josés, Marias, Luizas e Raimundos.
Carlos era Andrade Itabirano (MG) e viu as missas, as rezadeiras, o erótico, o vestido, os políticos, o consumo, braúnas, cavalos, estribos, murais… O doido, carabina, pedra, enxoval, gota da água, a banda e malas.
Carlos viu o bonde, o papel como coisa, casos comuns no sinuoso da vida e que se vira para a chamada existência: o caminho e suas pedras, o lugar, as faces, a praça, o leite, o assassinato, etc.
Drummond disse e conjugou tomar, amar, queimar, capinar, varrer, galopar, ensardinhar, morrer, nascer, ir, desmandar. Adjetivou e adverbiou torto, azul, ratos, mansinho, incomunicável, etc.
Necessitamos do poeta na sua vertente político-social para ver o Brasil mais de perto.
Hino Nacional
Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás das florestas,
com a água dos rios no meio, 
o Brasil está dormindo, coitado.
Precisamos colonizar o Brasil. (…)
Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros, 
assimilaremos finas culturas, 
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.
Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscina, 
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico. (…)
Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e 
                                                             tanta solidão
no pobre coração já cheio de compromissos…
se bem que seja difícil compreender o que querem 
                                                             esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de 
                                                             seus sofrimentos.
Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?
(Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo, Ed. Record, 2001, 12a edição)
*É paraibano, mestre e doutor pela ECA-USP. Professor de Teoria Literária na Anhembi-Morumbi, professor colaborador da ECA-USP, Fundação Escola de Sociologia e Política-FESP, além de contista e poeta com livros publicados (paulo@brasileiros.com.br).
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segunda-feira, 31 de agosto de 2015

O carpinteiro-poeta Carlos Nejar




Carlos Nejar, também chamado “Poeta do Pampa Brasileiro”, cria versos quase musicais

Carlos Nejar, que nasceu Luis Carlos Verzoni Nejar, advoga a palavra. Ficcionista, professor, tradutor e poeta nascido em Porto Alegre (RS), em 1939, ele foi eleito, em 1988, membro da Academia Brasileira de Letras. Carlos Nejar é um fardão sem farda, suas vestes são cozidas a sonho.
Escreveu Léo Gilson Ribeiro no prefácio de Antologia: “Nejar em árabe quer dizer carpinteiro e Carlos tem sido o carpinteiro de magníficos poemas ao longo de trinta e cinco anos – uma vida adulta inteira de fidelidade à poesia”.
Descobri que amar os poetas não se alinha com suas particularidades e desavenças. Prefiro sua vida na palavra. Nejar fulgura entre os grandes nomes da literatura, da poesia, e ungido pela loucura das palavras derrama seu sonho e sua poética vestida de cores múltiplas, tecendo seu verso até mesmo em sua prosa farta – caso de Rio Pampa: O Moinho das Tribulações (2006).
O poeta é desconcertante ao conjugar uma semântica diversa e criar na teia linguística e nas inversões sintáticas uma multiplicidade de incêndios nas palavras que elege e nos deixa pendurados ao sabor de sua malha poética no mundo do sonho que é preciso no viver.
Ordenações, 1970
“Não contratei com a vida
o que ela me liga
é uma fúria aprendida
mas que gosta de ventar em mim…”
Como nos apontou Manoel de Barros em seus poemas, ele faz a palavra delirar, cheia de contrassentidos tendo mais sentidos.
“Os homens eram de treva,
fizeram-se escravos dela.
Os homens eram remotos
no grande túnel de pedra. (…)
Floração ali não medra.
Tudo o que nasce é de pedra.
O tempo nasceu do homem,
Mas o homem não é pedra (…)

Os homens donde vieram
com seu destino de pedra?” (…)
(http://bit.ly/NIfBMQ)
E ainda em seus delírios avança com poema para Teotônio Banqueiro em Os Viventes:
“Amortizei a morte/e as promissórias foram/ trocadas como ameixas/ou pêssego insones./E compensei a infância/penosa tantas vezes./Comi a  própria fome/extrai dela os meses…” (2005)
Penso que no romance Rio Pampa, Nejar ultrapassa todas as barreiras de um ficcionista ao alargar as fronteiras do modelo (do romance). Aqui, temos a história de uma família como mote – suas atribulações no trajeto de vida –, a desculpa para o verso que tange de ponta a ponta, tendo o homem e seu existir diante da terra da água como foco e à mediada que faz propondo a investigação da palavra em suas vísceras, como que querendo ir além dela. Veja:
“(…) – As águas afundam e as imagens flutuam.
Não sei o motivo…
As águas do rio vão para o fundo, e as imagens que nascem de nossa vista, ou a imaginação, ou de nossos sonhos deslizam por cima das águas…
As imagens nos contemplam da mesma maneira. De dentro. Tem cor, aroma.
– Mãe, como se chama o que faz parar um navio?
– Âncora.
– Pois as palavras são nossas âncoras, não?
– Sim, também somos as palavras.
Sua memória é a nossa…” (2006)
*É paraibano, mestre e doutor pela ECA-USP. Professor de Teoria Literária na Anhembi-Morumbi, professor colaborador da ECA-USP, Fundação Escola de Sociologia e Política-FESP, além de contista e poeta com livros publicados (paulo@brasileiros.com.br).

terça-feira, 25 de agosto de 2015

“A vida é uma gota de creolina” Daniel dos Santos Lima- Recife -Pe

* publicado pela REVISTA BRASILEIROS

arquidiocesedeolinda.org






As palavras são de Daniel dos Santos Lima (1916-2012) – poeta, jornalista, professor, filósofo e teólogo
Luzilá Gonçalves Ferreira é grande professora, brilhante escritora e, chegada ao poema, soube fazer um surrupio das obras de Daniel dos Santos Lima. Ela foi a responsável por trazer até nós a obra do poeta. “Ele foi meu professor durante muito tempo. Era ciumento, não queria publicar seus escritos. Então, consegui ‘roubar’ seus textos. Pedi emprestado e não devolvi. Mostrei a ele apenas quando o livro estava quase pronto”, disse ela para a reportagem da Folha de Pernambuco, sobre o surgimento da obra Poemas (Companhia Editora de Pernambuco, 416 páginas, 2010), vencedor do Prêmio Alphonsus de Guimarães de Poesia, em 2011, concedido pela Fundação Biblioteca Nacional.
O pernambucano Daniel dos Santos Lima foi um grande poeta escondido em suas folhas, um mágico, um fermentador de palavras, um bruxo silábico, um garçom dos verbos, das aberrações do ser, da narração do insuportável e que nos dá, como disse Lourival Holanda, a poesia entre o silêncio e o gesto. Esse simples poético que volteia o mundo dos homens dizendo-os, desdizendo-os, tecendo-os em filigranas mansamente, em uma plenitude plumática de saber o que não se sabe, mas se balbucia. Isso é o poeta da creolina e da vida, dos janeiros, fevereiros e marços, como emZodíaco: “A felicidade é fruta/que tem sabor e cica/Março é fruta e é feliz”.
Ou em outro momento:
“Minha alma é periódica
funciona algumas vezes na semana
e é palúdica, tem febre
às quintas-feiras.
Tenho também um corpo que coitado,
a hospeda por dever, mas constrangido.”
Daniel dos Santos Lima era padre e foi também pastor de palavras. Pastorava a ironia com humor: “O intelectual é um urubu/que se julga vestido,/mas que está nu/com uma pena de pavão/enfiada/no cu”.
E mais, aos 8 anos, ele disse: “A vida/bem compreendida é uma gota de creolina/caída/numa latrina”.
Daniel mostra seu ofício de pescador e pedreiro da palavra: “Tortura-se o poeta/em busca da palavra exata/Só que a palavra exata não há para a poesia…/A palavra aproxima/não chega”.
Ora, o poeta tange seu terço em Ladainha Invocada: “Nossa Senhora dos ricos/Nossa Senhora dos fortes e dos poderosos/rogai por eles! (…)/Nossa Senhora dos amarelos/dos sem camisa, dos sem cuecas/Nossa Senhora dos remelentos/Nossa Senhora dos miseráveis/dos fedorentos/rogai por mim!”.
Ou ele espoca e canta em Aconteço de Mais e Sou de Menos:
“Viver, mais que fazer, é ver
Pois é vendo que a vida se navega,
e dança do ser
se revela e se dá
na exata hora em que vai passando.
(E se perdendo).
Em pedaços, rasguei o calendário,
na tentativa de impedir
o avanço do tempo.
Parei o relógio: seu tic-tac
Me envelhece e faz medo.
Mas o tédio que senti à parada do tempo
me consumiu a alma
e extinguiu-me os desejos.
Morri assim com o tempo assassinado”.
*É paraibano, mestre e doutor pela ECA-USP. Professor de Teoria Literária na Anhembi-Morumbi, professor colaborador da ECA-USP, Fundação Escola de Sociologia e Política-FESP, além de contista e poeta com livros publicados (paulo@brasileiros.com.br).

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

De olhos bem abertos............. José Luiz Passos




José Luiz Passos por http://bit.ly/2ZcVW2Y




*Publicação original- Revista Brasileiros



Confira na íntegra a entrevista com o pernambucano José Luiz Passos, vencedor do último Portugal Telecom
José Luiz Passos, pernambucano, nascido em Catende, 1971, é autor de estudos críticos sobre Mário de Andrade e Machado de Assis, entre outros. Publicou, pela Alfaguara, os romances Nosso grão mais fino (2009) e O sonâmbulo amador (2012), vencedor do prestigioso Portugal Telecom em 2013.
Sujeito de grão portentoso, José Luiz, escritor de força e disseminador da escrita, formou-se em ciências sociais na UFPE e foi fazer mestrado em sociologia na Unicamp. Logo estava na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, onde é professor titular de literatura brasileira, depois de concluir o PhD, em 1998.
Sua obra, ainda pequena, é farta e de qualidade reconhecida. O verbo intenso estreita-se com a limpeza narrativa e desafia os diálogos. Busca no sonho, entremeando-se com a vigília, o sujeito e sua densidade de ser. Seus personagens, aparentemente tênues, são rijos, recheados de argila. As cidades em que se ajuntam na linha do tempo ficam ao fundo, desfocadas. A questão não é o meio urbano ou rural, mas as agruras, a memória, o vão aço da existência.
Nesta entrevista, feita por e-mail, ele é direto, esclarecedor:
Como se dá seu roteiro de Recife aos EUA, e a que se deve ?
Saí do Recife em 1995 para fazer um mestrado na Unicamp, em Sociologia. Lá, durante meu primeiro ano, fui aluno de Octávio Ianni e Marisa Lajolo. Entrei em contato com alguns professores nos Estados Unidos e na Europa. Estimulado por professores da UFPE e da Unicamp, além de Randal Johnson, da UCLA, solicitei ingresso no doutorado de algumas universidades estrangeiras. Optei pela UCLA e vim para cá em setembro de 1995. Concluí o PhD em 1998 e fui contratado como professor de literatura brasileira e portuguesa pela Universidade da Califórnia em Berkeley, onde ensinei até 2007, quando a UCLA me fez uma oferta para que eu voltasse e ajudasse a montar o Centro de Estudos Brasileiros aqui em Los Angeles. Então, em 2008 me mudei de volta para Los Angeles, e aqui estou.
Como foi, no começo, essa passagem da sociologia para a literatura?
Desde a minha graduação, em Ciências Sociais, na UFPE, escrevia pequenas narrativas, poemas etc. Mas só vim a publicar meu primeiro texto numa revista da pós-graduação em Berkeley. Segui escrevendo, montando pedaços de um romance que viria a ser Nosso grão mais fino, escrito entre 1999 e 2004, e publicado em 2009. De certa maneira, todos os contos e poemas anteriores foram condensados no primeiro romance. E a partir de 2006 comecei a trabalhar no segundo, O sonâmbulo amador, publicado em 2012. A Sociologia ainda me interessa muito. Sigo lendo e acompanhando um pouco dela. Mas desde o início, o que me interessava era a Sociologia da Literatura, então a transição para a crítica literária foi gradual e natural. Aliás, aqui nos departamentos de Letras, os estudos são bem interdisciplinares: sempre há bastante de Sociologia, História e Estudos Culturais no ensino e na pesquisa em Letras.
 O sonâmbulo amador é um dos casos da nossa literatura em que a qualidade venceu o marketing. Ele foi lançado silenciosamente, aos poucos conquistando leitores, e por fim um dos maiores prêmios literários em língua portuguesa.
Fiquei feliz e surpreso com a repercussão do romance. Minha editora não faz alarde, não empurra as coisas em ninguém. Investe nos autores da casa, edita bem os livros, um a um, minuciosamente e sem cavilações nem efeitos pirotécnicos. É a mesma equipe; um grupo pequeno de pessoas dedicadas. A aposta que fazem é num leitor que busque uma narrativa ao mesmo tempo segura e original. (Claro, todos vão dizer que buscam a mesma coisa, mas sabemos que não é bem assim.) Jurandir, meu narrador, vem ganhando os leitores aos pouquinhos. Não é um livro que se leia rápido, de uma sentada só. O próprio ritmo da narrativa convida o leitor a entrar num pacto-tartaruga com o tempo. Jurandir remói as coisas. Esse vaivém na sua história pessoal pode espantar um leitor acostumado à exposição imediata de temas polêmicos, de bandeiras de um minuto atrás e cenas de grande impacto, plenamente inteligíveis, com todas as significações explicadas ao leitor. Mas Jurandir é o oposto disso. Não é cerveja na praia, é areia movediça. E, neste sentido, acho que encontra boa companhia no panorama atual da ficção brasileira.
Os sonhos de Jurandir compõem parte importante do livro. Na edição final você cortou vários deles, certo? Já pensou em algo como um caderno de sonhos de Jurandir?
É verdade. Escrevi O sonâmbulo amador entre 2006 e 2012. Os originais, na versão mais completa, passavam das quinhentas páginas. Precisei deixar de fora vários sonhos de Jurandir, além de um caderno que continha uma espécie de diário mais clássico, que ele escrevia para o médico, dr. Ênio. No final, optei por dar ao texto maior coesão. E escolhi os sonhos que se integravam à trama, sem no entanto oferecer nenhuma explicação ou ilustração dela. Curioso você me perguntar a respeito desse caderno. Recentemente, voltei a pensar nisso; se valeria a pena refundir o material cortado e fazer dele, por exemplos, um novela. Mas acho que não. Tirar leite das mesmas pedras não é ideia que me agrade. A vida de Jurandir já está contada, ali, no que há de mais essencial. E cortar é a alma da escrita, você tem razão. Aliás, passo mais tempo cortando e polindo os mesmos textos do que escrevendo coisas novas. Um bom romance é aquele que pode deixar boas partes de fora e, mesmo assim, sobreviver ao corte da matéria desconforme. A maturidade na escrita é saber quando parar e abrir a gaveta da tesoura.
Você se impôs um método de escrita relativamente rígido: produzindo primeiro os sonhos de Jurandir, depois, os eventos em sua vida presente, e seguindo, o enlace de ambos com as memórias e os textos que ele próprio buscava escrever.
Foram etapas bem diferentes. Passei um ano e meio só redigindo os sonhos, vários por dia, uns 120, sem me preocupar com o enredo. Também me impus uma restrição: não podiam ser sonhos meus. A parte mais difícil foi o começo, integrar tudo isso à trama e cortar o que não servia desde cedo. O momento de maior prazer foi chegar ao quarto caderno de Jurandir e planejar o desfecho. Àquela altura, os personagens já estavam de pé, delineados na minha cabeça e no papel. Já tinha diante de mim cenários inteiros para mergulhar dentro. É muito sedutor habitar essa fantasia sobre a vida dos outros, criada por você mesmo… Mas não consigo me imaginar mudando nada hoje em dia. Agora o romance tem vida própria. 
Tanto em Nosso grão mais fino, quanto em O sonâmbulo amador há uma atenção especial ao diálogo.  Que autores você admira ou se inspira para manter afiada a arte do diálogo? Ou você costuma ouvir as vozes das ruas?
Acho o diálogo algo difícil de se acertar de primeira. Invejo meus amigos que escrevem roteiros e peças. Em português, na época em que trabalhava no romance, lia muito Nelson Rodrigues. E, entre os daqui: Cormac McCarthy. Mas tem um detalhe. Não penso que o diálogo num romance deva ou mesmo possa ser exatamente igual à maneira como as pessoas realmente falam. O modo como as pessoas falam jamais é apanhado pela prosa no papel. O romance evoca ou alude a padrões que reconhecemos como correntes ou dialetais; familiares ou estranhos. E a oralidade na escrita é um artifício como qualquer outro. Ela tem uma missão e um lugar como oralidade representada naescrita. Ora, essa variedade não é cópia do real, mas representação dele. E toda representação é, de certo modo, um “falseamento” da coisa representada; é um modelo em escala diferente. Há momentos em que busquei um registro mais coloquial; outros, um tom mais burocrático, afim ao tipo de Jurandir: um funcionário sessentão, nascido no começo do século e prestes a se aposentar no final dos anos 1960. Ouço as vozes da rua, por assim dizer, para tirar ideias e tipos úteis às histórias que quero contar. Mas tento não copiar essas vozes. Se quisesse copiar, tais quais penso que são, seria melhor tentar o gênero do documentário, cuja aderência ao objeto retratado é (pelo mesmo em teoria) maior que a do romance de ficção.
Você acaba de publicar Averrós, um conto, por um selo de literatura digital. Você produz contos com frequência? Pensa em publicar um volume de contos no futuro?
Adoro o gênero do conto. Mas confesso que tenho um pouco de medo dele, porque para mim o conto é uma tentativa no campo da perfeição: um passo em falso e a casa cai. Além disso, quando começo um projeto, gosto de mergulhar nele sem ter a certeza ou a visão de um fim. No conto isso não funciona bem. Você precisa saber exatamente onde está indo. O romance admite muita impureza e até erros, redundâncias, digressões, além das gordurinhas. Tudo isso é a morte na forma curta. Então, sim: admiro o conto, tenho alguns guardados e outros em andamento, mas não pratico o gênero com tanta frequência. Sinto vontade de publicar um volume com essas narrativas. Quando tiver o suficiente para encher um livro, vou tentar. Mas acho que o conto será, para mim, uma forma da maturidade; virá mais adiante. Por isso, um dos aspectos mais saudáveis das publicações digitais é que o autor pode ensaiar seus passos, aos poucos, e contar com a mão ou com os tomates do leitor, a fim acertar da próxima vez…
Há na literatura brasileira contemporânea uma marca comum, as temáticas urbanas e realistas. Seus dois romances seguem caminhos opostos?
Essa pergunta é difícil. Acho um pouco apressado dizer que o traço urbano e realista define a narrativa brasileira atual. Concordo: é uma temática ou um estilo bem visível hoje em dia. Mas se isso esgotasse nosso panorama, estariam de fora, por exemplo, os dois lindos romances de Carlos de Brito e Mello; a vigorosa estreia de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira; os primeiros romances – aliás, extraordinários – de mestres no conto, como João Anzanello Carrascoza e Chico Lopes; grande parte de Antonio Carlos Viana; as narrativas impressionantes de Ronaldo Correia de Brito; além de clássicos recentes, absolutamente incontornáveis, como Francisco J. C. Dantas e Raduan Nassar. Até mesmo em narradores incontestavelmente urbanos, de mão segura nesse estilo, como Beatriz Bracher e Sérgio Sant’Anna, é possível encontrar momentos em que a irrupção do espaço interiorano (através da carta provinciana, da memória do garimpo) retomam a relação entre o campo e a cidade, em seu potencial dramático, de radicalização da metamorfose. A quebra de um pacto entre a cidade e o campo é um aspecto fundamental da modernidade nas letras brasileiras. Está na simplicidade atônita e genial de Rubião, em Machado de Assis; no mea culpa do Joaquim Nabuco memorialista; na mudança de lado de Euclides da Cunha frente a Canudos. Está no sentido das viagens de Macunaíma, na redescoberta dos poemas acreanos de Mário de Andrade; é o principal motor do ciclo de 1930; atravessa Guimarães Rosa, ressurge em Macabea, de Clarice Lispector. O sujeito rural, a vida na província, a viagem ao campo têm servido para destacar, em narrativas de cinema e literatura, questões políticas centrais na organização da vida brasileira. Aliás, a questão indígena, o êxodo rural e o problema da ocupação da terra estão vivos hoje, tanto em reservas quanto nas cidades, em favelas e quartos de empregada, como mostraram tão bem Bernardo Carvalho, em Nove noites, Paulo Scott, em Habitante irreal, e Kleber Mendonça Filho, no filme O som ao redor. Vale lembrar que não só as vozes de Ariano Suassuna, mas também as de Luiz Ruffato e Marcelino Freire têm forte ligação com essa diáspora do campo e da província, que constitui grande parte do cenário marginal das cidades. Lembremos de onde vem o nome “favela”, por exemplo… E em muitas das obras que destaquei aqui, campo e cidade se misturam num tom que beira o surrealismo brutal e ameaça a representação meramente realista de tipos exclusivamente citadinos. Isso dito, claro, concordo: a maioria do que se publica hoje em dia se passa nas cidades. Acontece que em literatura, as grandes exceções mudam as regras do jogo. No meu caso, o que posso dizer é que nunca tive a intenção de escrever um romance-tese, sobre o campo ou sobre o mundo rural, que comprovasse qualquer teoria nem estudo sociológico da região. Mas, aos poucos, lendo e ensinando Joaquim Nabuco, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Osman Lins, entre outros, me veio a sensação de que a representação da sociedade patriarcal, como lugar ou objeto para o qual converge a mirada crítica ou o sentimento nostálgico, traduzia uma visão parcial do fenômeno. A velha supermoderna indústria falida (têxtil ou sucroalcooleira) produz, ela também, um repositório de mitos sobre a idade de ouro, sobre o fausto, sobre a queda, sobre a degradação do caráter no tempo presente. E essas relações de compadrio e favor ainda nos definem mesmo nas grandes cidades. Então, por que isto anda fora do panorama literário, se é algo que nos toca? Busquei retratar aspectos desse mundo; meus personagens transitam entre o agreste pernambucano e a região metropolitana do Recife. Mas quis que a ênfase dos romances recaísse numa tentativa de recuperação do passado através do reencantamento de paixões e traumas adormecidos, que julgamos superados ou invisíveis. O tema é velho. As vozes são outras. Espero que o resultado seja novo. 
O escritor e sua divulgação… eventos e mídias?
Pois é… Conversei sobre isso, hoje mesmo, com João Paulo Cuenca, que está visitando Los Angeles esta semana. Por um lado, isso tudo é sinal de uma maior profissionalização da atividade literária no Brasil: mais agentes, mais feiras, festivais e bienais, mais canais de comunicação, mais oficinas e minicursos, mais espaço para se dar entrevistas, mais interesse da mídia impressa e digital, mais apoio do governo federal e dos governos estaduais para eventos de literatura etc. Mas isso resulta em melhores escritores? Em mais escritores? Em mais leitura ou mais leitores? Confesso que não sei. Sou pouco otimista a respeito disso. Do ponto de vista do autor, o que acontece hoje em dia é uma superexposição dele, ou dela, e de suas opiniões. Ocupar espaço nesses canais e nas mídias sociais virou parte do jogo. É claro que é importante ouvir o escritor. Porém, melhor seria, acho eu, mais espaço dedicado à publicação de literatura e de resenhas longas, detalhadas. Esta própria entrevista, que estou escrevendo neste instante, me tomou várias horas; na realidade, me tomou alguns dias. Eu poderia ter escrito um conto em vez de me dedicar à entrevista, não poderia? Então, uso esse nosso rito de contato como um exemplo bem rasteiro da contradição que quero apontar. Esta entrevista me dá espaço e, ao mesmo tempo, me tira um conto. Ela me promove e mata a minha literatura. A mercantilização da tarefa, do papel, das opiniões e dapersona do escritor resulta nisso. Ocorre que escrever literatura deveria ser, em parte, o contrário disso: um espaço que resiste à tipificação, à produção serializada de perfis. Literatura não se faz repercutindo pautas…
A literatura como desafio é…
Ela é feita no confronto de uma consciência com questões que têm relevância coletiva e plena urgência individual. Ela existe como a linguagem absolutamente singular de alguém que pensa seu mundo, em busca de chegar ao mundo de um outro. Essa literatura da qual estou falando se alimenta e ao mesmo tempo sacia demônios difíceis de se evitar, na companhia dos quais o autor escreve correndo o risco, inclusive, de ser derrotado por eles, de não alcançar nada que valha a pena ser compartilhado e, menos ainda, repercutido pelos infinitos eventos e canais de hoje em dia. 

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Universal como tem de ser


Ronlado Correia de Brito.oto DPe


*Publicado originalmente na Revista Brasileiros



Ronaldo Correia de Brito fala, em entrevista exclusiva, como construiu uma obra singular, marcada pela força das raízes do Nordeste, que ele faz chegar a todos os cantos do mundo

Ronaldo Correia de Brito é um cearense, mas já com marcas de pernambucanidade.
Com características de um cosmopolita a dizer sobre o homem e suas múltiplas faces,
ele nasceu na pequena Saboeiro, em 1951. Aos 6 anos, mudou-se para o Crato.
Em 1969, seguiu para Recife em busca do curso de Medicina, profissão que exerce
até hoje. Médico-psicanalista, ele transita entre diversos gêneros da criação, da
dramaturgia à narrativa literária – crônica, conto e romance. Foi também adaptado
 para o cinema – Lua Cambará (2002), foi baseado em seu conto homônimo, com
 direção de Rosemberg Cariry. Antes de ser conhecido como romancista, sua peça
Baile do Menino Deus resultou da parceria com o também médico Francisco de
Assis Lima. Não demorou a ser incorporada às festividades natalinas no Recife,
dar nome ao evento e se tornar expressão nacional.

A primeira obra em livro, de contos, saiu em 1987, quando tinha 36 anos: As Noites e os Dias, 
pela Editora Bagaço. Novos títulos só viriam mais de uma década e meia depois. Faca saiu em
 2003 pela Cosac Naify; Galileia, em 2008, pelo selo Alfaguara. O último o consagrou, com o 
Prêmio São Paulo de Literatura – Melhor Livro do Ano. A partir de então, tem sido um livro 
atrás do outro. Retratos Imorais veio em 2010. Seguiram-se Arlequim de Carnaval (2011), 
Bandeira de São João (2012), em parceria com Assis Lima; e Estive Lá Fora, de 2012, t
odos pela Editora Alfaguara. Ronaldo também colabora regularmente com as revistas 
Continente, de Recife, e Magazine, da Air France.
O médico e escritor tem uma veia de sertanejo bem explícita em sua obra, mesclada à 
urbanidade dos grandes centros nordestinos. Isso não só mostra a conjunção entre o 
urbano e rural, mas, sobretudo, destaca o universal do homem e suas dobras de 
memória. Seu modus operandi de escutador, seja como médico ou pesquisador dos sintomas, 
ajuda em sua escrita, que vem desde a mais tenra idade, lá no Ceará. Mas ele atualiza 
a mesma escrita, no transbordo para a literatura e, assim, faz uma nova tessitura do 
romance e do conto, em que o homem é tangido por um tempo de infinitas marcas, 
sociais e psíquicas.
Conheci Ronaldo via seu parceiro de algumas obras, Francisco de Assis Lima, poeta, 
teórico do conto popular, e, a nosso acordo, encontramo-nos em um almoço, em São Paulo, 
mesmo com a entrevista já realizada por e-mail e uma série de telefonemas. No encontro, 
fizemos alguns arrestamentos de fatos de sua vida, o que clareou certas recorrências de sua 
carreira e produção literária. É um homem de fácil acesso, cuja performance 
denuncia sua teatralidade e um verbo deslizante, como bom contador de histórias, em que 
se sente a festejada vontade de ser claro e de urdir bons argumentos.
Brasileiros – A literatura e sua vida: primeiro o médico e nas entrelinhas o escritor. 
Ou aconteceu o inverso?
Ronaldo Correia de Brito – Se penso bem, vejo que o meu interesse pela literatura é
 anterior ao meu desejo de fazer Medicina. No mundo em que nasci e fui criado, não
 existiam escritores profissionais e era natural nos encaminharmos para Medicina, Engenharia,
 Direito, comércio ou agricultura. Ser médico exige uma dedicação aos estudos e ao trabalho
 quase integral. Nos anos de faculdade, durante a especialização e início de carreira, foi difícil
 achar tempo para ler, ver cinema, teatro e dança, e, menos ainda, para escrever. 
Mais adiante, a esposa medicina e a amante literatura foram ajustando as agendas e os
 conflitos diminuíram. Vou completar 39 anos como médico e já me dedico sem culpa à literatura.
Por que a escrita diante de um tempo que é corrido e com poucos leitores?
Não posso condicionar o ato de escrever à expectativa de um grande número de leitores, 
embora seja desejável ter pessoas que leiam o que você escreve. O condicionamento ao leitor 
causa ansiedade e paralisia. No Brasil, os escritores são mais festejados do que lidos. 
Nada comparável a um jogador de futebol, é bem verdade. Mas é preocupante como as 
pessoas leem poucos livros e preferem as postagens dos blogs, sites e matérias j
ornalísticas da internet. São escritas bem diferentes do que nos habituamos a c
onsiderar boa literatura. Consolo-me lembrando de que alguns escritores foram pouco lidos 
em vida, ou nem publicados, como Kafka. Escrevo porque gosto, não me vejo fora da literatura, 
seria complicado viver sem os livros.
Medicina e literatura estão aglutinadas. Cuida fácil de ambos?
Sou a mesma pessoa quando atuo como médico ou quando escrevo. Não sofro nenhuma 
ruptura. Quando os meus pacientes falam e eu os escuto, sinto algo semelhante 
ao que experimentava quando ouvia as histórias dos narradores que passavam pela fazenda 
dos meus pais e da minha avó. A escuta foi outro costume abolido na relação entre as 
pessoas. É cada vez mais raro você encontrar alguém disposto a ouvi-lo ou você se dispor 
a ouvir alguém. Vivemos um tempo de altas tecnologias de comunicação, que nos isolam 
ao invés de nos aproximar. Um tempo de solilóquios. Tornou-se cada dia mais complicado, 
sobretudo aos jovens, ouvir, olhar, escutar e tocar. Cito esses verbos em um 
significado transcendente. Minha escrita se alimenta de escuta. Quando escrevo, os 
relatos dos meus pacientes ganham as narrativas. Todo dia saio do hospital enriquecido 
de novas histórias, que acabam aparecendo na minha prosa.
A literatura e a prosa o redizem, escapam ou racionalizam com seus ensaios?
Gosto de escrever ensaios. É uma maneira de ordenar ideias e pensamentos. Na revista 
Continente, procuro dar essa linha ao texto mensal que publico. Alguns ensaios reaparecem
 dentro dos contos ou romances. Tornou-se difícil separar gêneros literários, estabelecer 
fronteiras. Walter Benjamin diz que escrever é a técnica mais mosaica possível. Misturo 
estilos, há sempre um professor falando coisas que um jovem personagem não poderia falar. 
Já me acusaram de ser didático. Até debocharam desse modo como escrevo, às vezes 
parecendo um velho contador de histórias moralista. É possível que eu seja assim mesmo.
Reescreveria uma obra já publicada?
Nunca pensei nisso, mas creio que sentiria preguiça ou falta de vontade. Tenho escrúpulos 
até em abrir meus livros editados. Porém, se penso melhor, vejo que não faço mais 
do que reescrever a mesma história de um assassinato. Um tio matou a mulher, apunhalando-a 
sertão onde nasci. A história que escutei na infância teve forte impacto em minha vida, talvez
 porque sempre me revoltei contra o sofrimento das mulheres, na sociedade patriarcal e 
machista sertaneja. Ela é, de algum modo, recontada e faz parte da trama dos meus livros.
Como reage às críticas?
Leio pouco o que escrevem sobre mim. O deboche vem ocupando o lugar da crítica. 
Mesmo pessoas sérias, respeitáveis, escrevem peças humorísticas sobre as obras dos 
autores, achando tratar-se de crítica. Há muita maldade e pouco distanciamento, muita 
piadinha e deboche. É lamentável, fico atemorizado. Confio nas cartas que recebo. Quando 
esses leitores são duros e impiedosos, sei que escreveram para mim, sem a intenção de 
serem publicados e de chamar atenção sobre eles, mais do que sobre o escritor e seu livro. 
Certa vez, um estudante enviou um exemplar do Livro dos Homens para eu autografar. 

O livro chegou pelo correio e eu o abri com escrúpulo, como se já não me dissesse respeito.
 O volume fora todo sublinhado, havia inúmeras anotações e comentários. Tive cuidado ao
 folheá-lo, já não me dizia respeito, era propriedade de um leitor que o reinventara e reescrevera. Fiz uma dedicatória, assinei e mandei o livro de volta. Fiquei bastante aliviado.
Há uma distinção entre a sua literatura e a de autores de outras regiões ou não há mais regionalismo?Sempre me fazem essa pergunta, tornei-me repetitivo ao respondê-la. Sou um escritor do nordeste do Brasil, isso é evidente. Portanto, sou regionalista da mesma forma que Machado de Assis era carioca e William Faulkner um sulista dos Estados Unidos. Universalista é que não sou, isso é coisa para Thomas Mann e os romancistas alemães do final do século 19 e início do século 20, que escreveram o chamado romance de cultura. Sou um escritor contemporâneo, filiado à produção brasileira contemporânea. Não escrevo como os romancistas de 1930, nem professo a cartilha do Movimento Regionalista de Gilberto Freyre.
Galileia é um divisor, diferentemente de Estive Lá Fora?Estive Lá Fora foi publicado quatro anos depois de Galileia, e só cheguei a ele graças à experiência de ter escrito Galileia. Eu não podia repeti-lo, é um romance que avança na tradição literária, que elegeu o sertão como tema e cenário. Depois de tê-lo feito, eu podia escrever qualquer livro, sem sentir-me acuado, nem com remorso. Acho que Galileia se tornou mesmo um divisor – pelo menos para mim – ou uma espécie de limite. Depois de enveredar pelo romance e assumir uma ruptura com certas formas narrativas, tirei férias da literatura infantil e do teatro, embora continue trabalhando como encenador.
A psicanálise ajuda, perturba, ou nem uma coisa nem outra?A psicanálise me ajudou muito. O que escrevo é bastante psicanalisado. Não existe literatura sem influência da psicanálise depois de Dostoiévski e Freud. Só me assumi escritor depois de dez anos de divã, quatro sessões por semana. Foi um tempo difícil, uma experiência radical. Eu sofria um conflito doloroso na administração do tempo que dedicava à Medicina e à arte. Tchekhov viveu algo parecido, até inventou essa história de que a medicina era a esposa e a literatura a amante e, quando ele dedicava um pouco mais do seu tempo à escrita, sentia-se como se estivesse traindo a esposa. Eu sofria uma neurose parecida, com o agravante de que considerava o universo das artes como pertencente ao pai. Veja quanta piração.
Sua obra tem marcos de um contexto, claro. Você atualiza o sertão. Adonias é um personagem que filtra esse sertão?Adonias é um personagem pós-existencialista, até faz questão de citar Emil Cioran várias vezes. Ao mesmo tempo que está cravado no sertão da Galileia, circula pelo mundo e mimetiza as experiências vividas fora do universo a que se acha preso. Os três personagens – Ismael, Davi e Adonias – cada um a seu modo, sofrem os mesmos conflitos. Os três viveram na França e nos Estados Unidos. O sertão é continuamente comparado a esses lugares, destrinchado e medido. E esses lugares, por sua vez, também são julgados a partir da Galileia sertaneja.
Não há mais espaço para um sertão de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Cláudio Aguiar e Gilvan Lemos, ou só em uma verve de Guimarães Rosa como um semioticista do sertão?O poeta popular Fabião das Queimadas escreveu no Romance do Boi da Mão de Pau, referindo-se metaforicamente ao mundo sertanejo que se vai embora: “Já morreu, já se acabou/está fechada a questão”. Esses versos são proféticos. O sertão de Guimarães Rosa sobrevive pela força da poesia e da metafísica, e pela invenção do idioma ‘guimaranês’. Para mim e para os escritores residentes no nordeste do Brasil, Guimarães não representa uma saída, ele é inimitável. Os outros autores ligados ao romance de 1930 já escreveram bem as suas obras e se garantiram. Nós outros, os sobreviventes, continuamos ralando.
Algum trabalho novo em andamento?Sim, trabalho em um novo livro de contos e escrevo um romance, mas tudo bem devagar. Já disse algumas vezes que sou um escritor à revelia, um desistente. Escrever é sempre custoso. Acompanhei durante 40 anos o trabalho do xilogravurista pernambucano, Gilvan Samico, que imprimia apenas uma gravura por ano. Isso demandava um enorme esforço, porém esse esforço o mantinha vivo. Nós dois sofremos um mesmo rigor e nunca esperamos que o rigor do nosso caminho tenha fim. Desde os primeiros escritos, optei por narrar histórias. Há certo desprezo pelos narradores no meio acadêmico, que preferem o que chamam de linguagem elaborada, um gosto que surgiu, se não me engano, por volta da década de 1970. Quando concluí o romance Estive Lá Fora, eu me sentia satisfeito com o resultado que alcançara. Meu primeiro editor, Mário Hélio, me advertia sempre que a satisfação é a ruína de um escritor. Acho que por isso esperava uma resposta maior ao romance, que não veio. Fiquei um tempo sem vontade de escrever, a desistência agravou-se. Eu tinha o exemplo de Raduan Nassar, um escritor que admiro muito, que largou tudo muito cedo. No ano passado, encontrei Milton Hatoum num evento em Natal, e ele me falou de certa despreocupação em não ter de escrever, um alívio descansado. Senti vontade de embarcar nessa. Mas sou da escola de Samico e a escrita de certo modo me mantém vivo. Voltei ao trabalho, ocupo-me novamente em narrar histórias.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

O homem que descreveu o doce amaciamento da palavra brasileira na senzala


foto por ensaios e notas

Gilberto Freyre (1900-1987), Recife (PE)


O homem que descreveu o doce amaciamento da palavra brasileira na senzala
A VII Fliporto 2011, que aconteceu em Olinda (PE) em novembro, teve como grande homenageado Gilberto Freyre, sendo refletido por meio de Edson Nery da Fonseca, pernambucano e o maior conhecedor de sua obra. Destaque também para Fátima Quintas, antropóloga, contista e cronista, e M.L. Pallares-Burke, historiadora.
Gilberto Freyre inovou a palavra, a narrativa científica da Sociologia, Antropologia e História do Brasil em suas peculiaridades dos intimismos. Apreciador de literatura nacional e internacional, jornalista, poeta e novelista e amigo de tantos, entre eles José Lins do Rego e Manuel Bandeira.
Em São Paulo, Lobato, que foi um de seus apreciadores, publicando seus artigos iniciais na Revista do Brasil (1923), também foi seu amigo, assim como Sergio Buarque de Holanda.
Eu, como paraibucanosampista (paraibano, pernambucano e paulistano), fico na obrigação, com estilingue ou baleadeira da memória, de afiar alguns focos de Freyre.
Em 2000, a revista The Economist colocou Casa Grande & Senzala como uma das obras do século – apenas ela figurou representando a língua portuguesa. Gilberto Freyre, em sua inovação na história das intimidades, causou embates, mas o mundo o consagrou. Aqui, queremos ressaltar de modo breve, na sua vastidão de aportes à nossa cultura, a contribuição dele na sociolinguística no terceiro e quarto capítulos desse livro de 1933, em que Freyre fala:
“() Alguns indivíduos fazem profissão de contar história e anda de lugar em lugar recitando contos. Há o akpalô, fazedor de alô ou conto; e há o arokin, que é o narrador das crônicas do passado. O Akpalô é uma instituição africana que floresceu no Brasil na pessoa de negras velhas (…) Por intermédio dessas negras velhas e das amas de meninos, histórias africanas, principalmente de bichos-bichos confraternizando-se com as pessoas, falando como gente ( )”
Gilberto Freyre destaca, com seu faro antropológico e sua faca literária luminosa, o contato das negras com a palavra portuguesa, dando-lhe outro tempero sonoro, rearrajando-lhe o que deu um toque no nosso hibridismo linguístico. Mesmo com tratamento sangrento que o torturou e dizimou muitas nações negras, o negro penetrou na língua como o dói, amolecendo-se em dodói.
As negras adentraram as casas grandes retemperaram a comida, o sexo, o ninar, o peito (seu leite) e Freyre amolega a narração ao demonstrar essa modelagem linguística:
“(…) A ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo com a comida: machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino branco as sílabas moles (…)” (trechos de Casa Grande & Senzala)
Acrescentaria ainda que a negra ouviu a criança e deu carícia ao fonema, propagando-o como ododói. As amas deram a doçura da infância, mesmo com o tratamento de terror que recebiam dos senhores da Casa Grande.
Surgiram, segundo Gilberto Freyre, as DondosTotonhasToninhas (Antônias), as Tetés(Terezas), os NezinhosMandusManés (Manuéis), Chicos ou Chicós (Franciscos), e as Iaiás, dos IoiôsSinhásManusCallusDedés e Nocas, sem falar em caçambacangadengo,mulambocafuné e camudongo, entre outras.

*É paraibano, mestre e doutor pela ECA-USP. Professor de Teoria Literária na Anhembi-Morumbi, professor colaborador da ECA-USP, Fundação Escola de Sociologia e Política-FESP, além de contista e poeta com livros publicados (paulo@brasileiros.com.br).

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Uma mulher a cerzir o sonho poético


Eu não a conhecia. Mas ela é paulistana, doutora em Literatura Francesa, USP. De repente, flagro-me catando, feito rato, em livraria algo que me puxe os olhos. Daí, eu vejo Tenho um Cavalo Alfaraz(Editora WMF Martins Fontes), de Ivone C. Benedetti. Abro ao acaso e lá vem ela a me dizer:
“(…) Quem escreve se apossa da sua palavra ou da alheia e entrega essa palavra a quem não conhece, que também se apossa dela. Não é assim que gosto. Palavra minha. Se desmancha no ar antes que alguém tomar posse…”
Seus contos, em número de sete, tecem uma cambraia, ora organdi ou mesmo chita, apalavrando um social paulistano e sua geopolítica nacional e migratória. Ela sabe o que é escrever. Afinal, trabalha com as palavras, como carpinteira da mesma, em dicionários e traduções.
Como carpideira de palavras, e como toda enfeitiçada, tem a coragem de dizer em entrevista:
“Escrevi muita poesia a vida inteira, mas nunca me vi como poetisa… O exercício da prosa acabou esgotando a mina. Aproveitei alguns trechos de poemas meus como epígrafe dos contos de Tenho um Cavalo Alfaraz, porque havia relação entre eles e a temática desenvolvida em cada conto”.
Agora tento desdizê-la:
“…Um rosto veste sempre
a mesma cidade
a cidade só veste
o rosto que passa pelo momento (…)

(…) Seria uma lasca de madeira a prender mangas de quem passa?
Não fora uma faca a se esconder entre as barbas da oração.”
Ela dissimula, concorda? Esses versos abrem são as tias epígrafes dos contos.
Mesmo em Immaculada (Editora WMF Martins Fontes), romance finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2010, ela esconde em sua saga sua estética poética, da cidade de São Paulo dos anos 1920 a 1960, radiografando famílias de classes alta, média, média alta e seus mediadores de outras classes de um meio rural e urbano, costurando sua trama de modo seguro, dando-nos um retrato dessa cidade, em uma pesquisa histórica e tanto, mas como cerzideira da palavra, a autora nos dá um espelho da cidade em seus vértices sócio-político-econômico, sem perder jamais seu cerzir de construção da narrativa de fibra em seus personagens.
Ivone Benedetti não desiste de seu choro poético e assim nos diz no início da construção da saga: “(…) Mas erro só se comete quando é possível acertar. Quando o que se faz daria para não ser feito. Como deixar de viver o que tem de ser vivido, o que arrasta a gente porque insabido? Como tapar os ouvidos para aquilo que o desejo vai contando aos poucos, fechar os olhos para que o instinto vai mostrando sem mostrar?” (trecho de Immaculada).
A escritora é uma viola boa paulista que, sentada em seu cavalo de porte, vai cerzindo as palavras em suas lascas, no manso ou duro dos seus dedos quentes e vivos e vai dizendo:
“Tenho um cavalo alfaraz
levo uma espada de luz
nessa garganta um vulcão
dois feixes de sons nas mãos
e um ventre cheio de paz”.

*É paraibano, mestre e doutor pela ECA-USP. Professor de Teoria Literária na Anhembi Morumbi, professor colaborador da ECA-USP, Fundação Escola de Sociologia e Política-FESP, além de contista e poeta com livros publicados (paulo@brasileiros.com.br).

sábado, 18 de julho de 2015

O poeta da cidade acocorado no sertão: Francisco Assis de Sousa Lima



*publicado pela Revista Brasileiros-junho/2012*

Assis Lima é médico, poeta, mestre em Psicologia Social pela USP, cearense, mas há muito tempo em São Paulo, onde aperfeiçoou o ofício de marceneiro/engomador da palavra de um nordeste amalgamado em suas tradições medievais, repaginadas na boca do povo e cuspidas na renda poética do autor.
Assis lida com a palavra na clínica, cobiçando seus minerais imaginários, como todo escutador do mundo e sem fastio, mas não desgarra seu ouvir a poética do sertão, ruminando os filamentos da dor e da alegria:

“… Colhendo o poema e cada palavra
em lâmina e pétala
No afiado gume do tempo…” (Poemas Arcanos)
“Esquecida nas eras
a língua de meus avós
que voz tão minha,
Voz de três línguas…” (Poemas Arcanos)

Pesquisador da cultura popular, ele passeia por grandes autores com deslizar de quem conhece. Autor da obra Conto Popular e Comunidade Narrativa (1985, com prefácio de Antonio Candido), organizou Contos Populares Brasileiros (Ceará, 2003). Também é parceiro (antigo) de Ronaldo C. Brito em trabalhos, como o roteiro/trilha do filme Lua Cambará (1977), a trilogia Festas Brasileiras(Baile do Menino Deus – 2011), O Pavão Misterioso (Cosac Naify, 2003), além de Poemas Arcanos(Ateliê Editorial, 1998), Marco Misterioso (Dobra, 2011) e Chão e Sonho (Dobra, 2011).
Destaco aqui Baile do Menino Deus, que virou peça de teatro e expõe um Natal brasileiro sem Papai Noel, neve ou guirlandas, trazendo a cultura popular nordestina à baila por meio de figuras como Mateus, bumba meu boi, Catirina, caboclinhos, cigana, pastora, além de elementos da cultura afro – tudo conduzido por ações do brincar infantil, que faz puxar o baile.
O cimento da construção poética de Assis Lima é de argamassa milenar do povo, em que ele diz seu lugar, cinze seus olhares de inquietude sobre o mesmo e afina a pontaria:

“… Consultei meus alfarrábios
começando com Cascudo.
Foi como subir na árvore
da origem que há em tudo.
Da árvore tirei a lasca,
Da lasca tirei a casca
Do cascalho o ouro fino.” (Marco Misterioso)

Mas o engomador das palavras tem vários ponteiros e, em que pese o sumo popular lhe encrostar, ele salta (ou dá de garra) para um outro requinte, com os fagotes e flautas que lhe inspira Rilke:

“Na tarde verde da tua lembrança
de onde me vens
Em inviolado silêncio
frágil como a fortaleza do meu grito
Sou espera…” (Poemas Arcanos)
“O tempo me ensinou a ruminar
Eu rumino o bredo dos séculos que comi.
Rumino como velhos feiticeiros
a memória das eras antigas.
Minha memória é feitiço que dobra o tempo que marca o ponteiro do sol,
Que deixa a lua reinar
No sangue moreno da terra…”

(Poemas Arcanos, idem, 2008, p.61)

E fechando:

“Tragado pela noite,
salvou-me a Madrugada.” (Chão e Sonho)


*É paraibano, mestre e doutor pela ECA-USP. Professor de Teoria Literária na Anhembi Morumbi, professor colaborador da ECA-USP, Fundação Escola de Sociologia e Política-FESP, além de contista e poeta com livros publicados (paulo@brasileiros.com.br).