DOCUMENTO
Novos rumos das HQs
Por André Dib
É relativamente antiga a tradição do humor e das artes gráficas em Pernambuco. Seu marco zero está precisamente no ano de 1831, quando veio às ruas o jornal satírico O Carcundão, como assinala matéria recente, na edição nº75 desta Continente Multicultural. Fechando o foco para as últimas décadas, é possível listar nomes de diferentes vertentes ou escolas, como Conceição Cahú, RAL, Cavani Rosas, Luís Arrais, Laílson, Clériston, Marcelo Coutinho, Watson Portela e Paulo Santos. Todos têm trabalhos publicados em jornais e revistas comerciais, ou de forma independente nos projetos locais Paca Tatu, Folhetim Humorial, O Rei da Notícia e o Papa-Figo, este último ainda circulando incólume pelo Recife.
Nos anos 70 e 80, a grande referência para os desenhistas de humor era o tablóide carioca O Pasquim. "Foi o meu curso superior", diz RAL, fortemente inspirado nas estripulias gráficas de Henfil e sua turma, onde colaborou por muitos anos. "Naquela época a gente usava os quadrinhos como uma trincheira estética, havia uma resistência para não nos vender para os americanos", confirma Clériston. Ainda nos anos 80 surgiu a Produtora Artística de Desenhistas Associados (Pada), uma rede de artistas que até hoje edita e distribui a Prismarte, uma das revistas independentes mais duradouras do Brasil.
Em 1998, o cenário ganhou novo fôlego com a criação do Festival Internacional de Humor e Quadrinhos, concebido e articulado até 2005 pelo cartunista Laílson de Holanda Cavalcanti. Ao mesmo tempo, pela primeira vez foi fundada uma organização de classe, a Associação dos Cartunistas Pernambucanos (Acape). O intercâmbio e as oficinas promovidas pelo FIHQ e pela Acape eram o combustível que faltava para toda uma geração que hoje se organiza coletivamente e experimenta novas formas de expressar sua criatividade.
"As soluções que o grupo conquistou servem de referência para todos os associados individualmente. Antes, não havia produções locais que circulassem nacionalmente. Hoje, Pernambuco está no circuito de publicação comercial", avalia João Lin, presidente da Acape. Entre outras conquistas coletivas, está a criação de um modelo de contrato-padrão (que contempla o pagamento dos direitos autorais e de uso de imagem), e da tabela de valores de referência, disponível desde o ano passado no site da Acape. Informações básicas para qualquer categoria profissional, mas que no campo das artes gráficas ainda são pouco reconhecidas.
Entre 1999 – 2000 surgia o coletivo Ragú, com um projeto de revista que chamou a atenção pela qualidade gráfica e de conteúdo. Primeiro, ao apresentar a arte dos pernambucanos Lin, Mascaro, Flavão, Jarbas e Samuca. Depois, por ter crescido como coletânea nacional de quadrinhos, com a colaboração de expoentes como Fábio Zimbres, Eloar Guazelli, Marcelo Lélis e Samuel Casal. Além da revista, lançada de dois em dois anos, a Ragú conduz projetos paralelos como o de literatura em quadrinhos Domínio Público, cuja proposta é abordar um público de formação com adaptações visualmente criativas.
Sete anos depois, inspirados no barulho causado pela Ragú, e tendo como modelo editoras underground como a Rip Off Press , outro grupo criou a editora independente Livrinho de Papel Finíssimo, dedicada a publicar trabalhos autorais, geralmente sem espaço nos meios estritamente comerciais. Fabricados no processo de reprografia ou impressão digital, os títulos da Livrinho são vendidos de mão em mão, com o preço variando entre módicos R$ 3,00 e R$ 12,00. "Os autores entram com o papel, e a editora banca a impressão, edita, pagina e faz a diagramação", explica Diogo Todé, integrante do grupo ao lado de Camilo Maia, Greg e Henrique Koblitz, este último, autor de Micróbio, uma HQ minúscula, feita em papel dobrado e desenhos pixelizados. "Poética pixel", define o autor.
Possibilidades de experimentação que acabaram por atrair desenhistas já estabelecidos, além da própria Ragú, que, através do selo Ragú Zine, se associou à editora na coleção Olho de Bolso, cuja intenção é mixar a arte do cartum, ilustração, quadrinhos, grafite e artes plásticas, em diferentes técnicas de impressão: carimbo, clichê, litogravura e digital. Serão 12 títulos, 200 exemplares cada, ao preço de R$ 5. Os dois primeiros títulos, com trabalhos de Laerte Silvino (cartuns filosóficos com textos de Confúcio) e Galo (grafiteiro do coletivo Êxito d'Rua), serão lançados durante o FIHQ.
Por sua vez, uma conquista individual digna de nota é a da ilustradora de livros infantis Rosinha Campos, que há 13 anos vem assinando a arte de 42 livros publicados por 15 editoras brasileiras. Lançado no início deste ano, Esmeralda é um trabalho autoral, fruto de uma experiência de 65 dias em Fernando de Noronha, como orientadora de Oficinas de Leitura. Em 2007, ela é a única ilustradora brasileira convidada para participar da Bienal de Ilustração da Bratislava (Eslováquia), marcada para este mês de setembro.
Paraíba – Os quadrinhos produzidos pelo front paraibano revelam um panorama um tanto quanto heterogêneo. De um lado, há a figura quase inacessível de Mike Deodato, estrela estabelecida no Olimpo dos comics norte-americanos. Do outro está Shiko, artista em ascensão no segmento dos quadrinhos marginais, sendo ele a nova extremidade de uma linha evolutiva que passa por Marcatti e Lourenço Mutarelli.
Mike Deodato nasceu em Campina Grande, batizado Deodato Taumaturgo Borges Filho. Seu pai, o jornalista Deodato Borges, tornou-se pioneiro dos quadrinhos no Estado ao criar o super-herói Flama, nos idos de 1960. O caminho aberto foi só o começo para o filho, que desde os anos 80 publicava cartuns e charges na imprensa local. Na década de 90, após a revelação no Festival de Angoulême (França), conseguiu espaço em editoras dos EUA. Adotou o nome Mike Deodato por exigência da gigante DC Comics, que o contratou para desenhar a Mulher-Maravilha. O estrelato veio em 2003: seu passe fora comprado pela concorrente, a Marvel, que o escalou para desenhar o Incrível Hulk no mesmo período em que o filme de Ang Lee estourava nos cinemas.
Mesmo isolado do mundo enquanto trabalha em seu estúdio, Deodato com certeza não está só. De olho no caminho aberto pelo conterrâneo, um grupo de desenhistas fundou o Made in PB, um coletivo que articula e capacita artistas de quadrinhos com cursos e oficinas. Um dos integrantes, Jackson Santos, nascido na cidade de Bananeiras, foi recentemente convocado pela Dynamite Press para desenhar a série Battlestar Gallatica. Antes disso, ele vem assinando as pranchas sob a alcunha de Jack Hebert.
"Esse é o sonho deles. Só que quando passam a trabalhar para os americanos, viram apenas mão-de-obra", garante Henrique Magalhães, fundador da editora Marca de Fantasia, sediada há 12 anos em João Pessoa. "É claro que eu respeito a capacidade e o trabalho excepcional de Deodato. Mas eles não estão fazendo os próprios quadrinhos. Estão desenhando os dos outros. Certamente não é o 'viver de quadrinhos' que imaginavam", analisa o pesquisador.
Diametralmente oposto a este cenário está Francisco José de Souto, natural de Patos, outra cidade do interior paraibano. Em 1997, passou a editar o fanzine Marginal, que ganhou uma coletânea pela Marca de Fantasia. Adotou o codinome Shiko porque no período em que trabalhou em Brasília já havia outro Chico no ramo. E também porque aprendeu num mangá que shiko significa a área de alcance de uma espada samurai. Para dar forma à sua percepção da realidade, Shiko usa o grafite, a tatuagem, as artes plásticas e os quadrinhos. Quase sempre de forma mais ou menos pornográfica, como na série de telas a óleo com uma Olívia Palito despida num balcão de bar. Seu livro de estréia, Blue Note (com roteiro de Biu), impressiona pela poesia cada vez mais rara nos quadrinhos nacionais, aditivada de referências da cultura musical (jazz, blues e rock) e cinematográfica – entre as 100 páginas do livro, há cenas retiradas de Cinema, Aspirinas e Urubus, e uma seqüência inteira de Amarelo Manga.
"O trabalho de Shiko é outro universo, não se enquadra de forma alguma com nada. Ele tem um trabalho bem filosófico e baseado em literatura. É algo excepcional dentro do Estado. Já era para seu trabalho ser reconhecido nacionalmente, ter uma repercussão maior. Era para Shiko estar publicando na Conrad, que é uma editora que tem investido no quadrinho brasileiro. Ou na Opera Graphica, como Emir Ribeiro (outro desenhista paraibano) já publicou a personagem Velta", opina Henrique, em um lamento que se estende para os demais artistas do seu Estado. "No Recife, existe um trabalho de incentivo, de estímulo aos quadrinhos pernambucanos, e que consegue agrupar muita gente. Aqui a gente não encontra isso. É cada um fazendo o seu trabalho isoladamente", diz, talvez sem dimensionar a importância de seu papel neste contexto.
Afinal, organização é o que não falta neste belo exemplo de editora independente que é a Marca de Fantasia, com seu processo de fabricação estritamente caseiro (com exceção das capas, impressas em off-set). A baixa tiragem permite manter em catálogo mais de 50 títulos, todos custando no máximo R$ 12,00, valor que cobre os custos de produção e envio do material. Atualmente, são mantidos cinco selos, entre álbuns, revistas e 18 livros com ensaios e estudos acadêmicos sobre quadrinhos, como Riscos no Tempo, livro de J. Audaci Júnior, que conta os últimos 40 anos de quadrinhos na Paraíba. Uma história de altos e baixos, e que parece estar longe de terminar.
(Leia a Documento na íntegra, na edição nº 81 da Revista Continente Multicultural. Já nas bancas)
André Dib é jornalista.