O
encontro com a vida, um ofício e as Pequenas Virtudes
Natália
Ginzburg, 1916 - 1991
Uma vida
Há algumas pessoas que não passam ao lado da vida. Elas
vivem, crescem e morrem ao seu lado, questionando a vida, que, ao ser debulhada,
ganha contornos de uma obra de arte. Assim, quando dizem, por um ofício,
sobretudo o literário, dizem mais e de modo brando, seguro e poético, não como
passado, mas como argamassa que lhe constituiu, na artimanha com a linguagem. Assim
foi Natália Ginzburg – escritora, poeta, ensaísta, autora de peças teatrais e
editora, chegou a deputada dentro do seu país. Nasceu em Palermo, Itália, e é
uma dessas mulheres raras na sua literatura e concisão com a vida, mesmo diante
de tragédias (fascistas) e passagens pelas duas guerras, junto a si – através
do pai, do marido, da família e amigos. Trata os fatos com dores, mas com
serenidade, como a da sua escrita.
Sua obra soma mais de uma dezena, mas os leitores
brasileiros ainda não se debruçaram sobre a mesma, que não foram traduzidas in totum.
No Brasil, suas obras somam a sete com seu último – As pequenas Virtudes, 2015, Cosacnaify (Le piccole virtú, 1962), cuja tradução de
Mauricio Santana é sensível e fiel, jovem que conhece a obra da escritora, e
tem intimidade com a língua italiana desde seus trabalhos de mestrado à sua
carreira dentro da Literatura Italiana.
O Meu oficio - nas pequenas virtudes
Na obra, a autora oferece ensaios que foram escritos para
jornais e revistas, na Itália e em Londres.
A obra é dividida em duas partes. Na primeira, com seis
ensaios – dentre os quais destaco três, sem desmerecer os demais –, Natália se
debruça sobre vários momentos de sua vida, desde o exílio dentro da própria
Itália, em Inverno em Abruzzo,
passando pela amizade com Cesare Pavese, no Retrato
de um Amigo, em que a autora se desfaz em carinho pelo mesmo, falando de
sua jovialidade e seus poemas, e em Ele e
eu, no qual se remete à relação com o segundo marido, Gabriele Baldini,
suas aproximações e diferenças. Na segunda parte, com cinco textos de natureza
mais melancólica, encontra-se o ensaio sobre As pequenas virtudes, em que aborda a educação dos filhos e foca no
que se constitui a virtude. Ainda de escrita belíssima e poética, em Silêncio, Natália revela as costas do
silêncio e seus encontros com o mesmo dentro da criação literária. Contudo, o
que me leva a uma vontade alucinante de aqui escrever é O meu Ofício, sobre o qual Ítalo Calvino diz ser “uma lição de
Literatura”, na contracapa de As pequenas
virtudes.
Neste ensaio, a autora debruça-se sobre uma espécie de
genética de sua escritura. Ali ela cisca, como fazia na juventude, entre as
palavras, para dizer os fundamentos de seus discursos e os emanta em sua
própria vida, quase como consequência de um ato fisiológico, como bem observou
Cesar Garboli, seu amigo e grande crítico Italiano:
Os
níveis em que a fisiologia se manifesta e percorre a sua viagem mental se
concentram todos na completude do ovo, multiplicando-se e “sucedendo-se” a tal
como fazem as vísceras. Em primeiro lugar assiste à transformação o do tema
fisiológico em corpo narrativo (trata-se do nível mais simples): o encontro com
o mundo, a entrada na vida, o comer, o parir, a composição e o desdobramento da
relação carnal com a realidade em um sistema contagioso de relações que são
sediadas no próprio corpo... (Garboli apud Ginzburg, p.142, 2015)
Aqui o crítico refina e deslinda a verdade da escrita
ginzburguiana, como ato contínuo, muito mais de indagações dos seus impactos
com a vida e que, portanto, dá sentido à implosão de sua subjetividade,
manifesta na sua escritura, como forma de não sufocar, e esse corpo se
manifesta literariamente por sua condição pensante, ela como nos cita e como
artifício legítimo se utiliza das estruturas na terceira e primeira pessoa,
para assim modalizar a escritura, como ela e um outro.
Em Natália, há vários outros em seu ofício de escritora,
sacudindo a memória, as estruturas imaginárias forjadas no seu viver para
construir sua obra. E diz Natália:
[...] O fato é que só sei escrever histórias. Se
tento escrever um ensaio de crítica, ou um artigo sobre encomenda para um
jornal, a coisa sai bem ruim. O que escrevo nesses casos, tenho que ir em busca
penosamente fora de mim...E sempre tenho
sensação de enganar o próximo com palavras tomadas de empréstimo ou
furtadas aqui e ali. E sofro e me sinto em exílio. Entretanto, quando escrevo
histórias, sou como alguém que está em meu País, nas ruas que conhece desde a
infância, entre as árvores e os muros que são seus. O meu oficio é escrever histórias,
coisas inventadas ou coisas que recordo de minha Vida, mas sempre histórias [...]
(Ginzburg, p. 73, 2015)
Ao se colocar assim, ela faz uso da intimidade real,
possível, para transgredi-la nas pontas e centro do seu imaginário de modo a
constituir brechas da criação, modelando-a como uma espécie de óleo sobre tela
abstrato, que pode aos poucos ganhar figuratividade ou não: apenas são pontos,
tintas em multiformes apanhados num delito da narração, que contornam uma
espécie de pré-roteiro narrativo e que se vai colorindo com outras tintas.
Nada é demarcado, o ponto inicial pode ser tudo: uma frase,
um sentir que pede linguagem e assim vai se adequando, apoiado numa vivência
existencial por onde se mistura a tudo e daí funda um texto que ela organiza, naturalmente.
Ao falar do seu primeiro conto, ela mostra uma face de sua
composição, e assim ela diz que surgem personagens antigos, criaturas ingênuas
e ridículas de outra era “Fala de personagens como uma mulher, um homem de
barba ruiva e ela não sabe de onde vem, mas adianta, e diz que os toma e pega
emprestado palavras frases:
“As palavras e frases de que me servira para
eles foram pescadas assim, ao acaso: era como seu tivesse um saco e fosse
tirando dele ora uma barba, ora uma cozinheira negra ou outra coisa que pudesse
usar...”(Ginzburg,pag 77,2015)
Natália, neste ensaio, oferece uma
contribuição aos estudos da criação literária, um depoimento sincero, sem rodeios,
com a poesia que sempre carrega e que facilita a aproximação de seu texto. Por
sua vez como nos lembra Ettore Finazzi-Agrò, professor italiano e estudioso da
Literatura Brasileira, em O bordado da memória, posfácio de Léxico Familiar, 2009:
Natália
escondia “no seu avental” a arma da memória de que se utilizou tantas vezes pra
se vingar da história que lhe arrancou o mardo e pôs fim àquela
civilização...(Léxico Familiar, 2009, p.225)
Mas seu estado de ser e sua força não
titubeiam a sua estrutura léxica: ela é limpa e seu tradutor nos ajuda. E
assim, misturando seus depoimentos, deum espelho, de um molho de tomate, uma
semolina, um echarpe, uma colina, ou até mesmo nas entrelinhas um silêncio
encravado, enfiado na cara de personagens como Nini, em O caminho que leva à cidade, 1998), ou como seus gatos de Família (
J Olympio, 2003) ou entre seus personagens do Caro Michele, em que o estilo epistolar lacra um silêncio como
multifacetas de um ofício de escrever. Ela costumava mastigar as palavras ou
frases que a chamavam atenção, para exercer com seu suco o adequado locum frasal: ”Minha veste é escura:
Esta também é uma frase que repetir muito tempo para mim, Durante o dia,
murmurava estas frases que agradavam tanto.”
O ofício de Natalia é a consolidação de
sua vida – o encontro com a vida –, como nos diz Garboli em As pequenas virtudes. E dizê-la as
dessufoca e emerge novo oxigênio: dizer sempre refresca...
A autora, ao forjar seus ensaios, o faz
com as gomas de sua vida, nos traços tênues de sua linguagem e perscruta
intimidade do criador, situando-se em latitudes às vezes até pavesianas, mas
com seu próprio tempero.
E, para findar, nessa sua imensidão de
humanidade, de trançadeira de bordados italianos en parole, imersos em sua literatura, digo com as palavras de
Garboli:
“Escrever,
situar-se num ângulo, em ponto oculto do passado, e fazer voar fazer correr por
aí afora toda vida que nunca foi nossa.”(Léxico Familar,2009, p.147 As pequenas
virtudes)
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