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Nem todos encaram com seriedade as medidas restritivas orientadas para barrar a contaminação por Covid-19. Porém, para a historiadora da psicanálise Elisabeth Roudinesco, sobreviver é a prioridade quando falamos de uma pandemia: “Quando a vida e a morte estão em jogo, eu, pelo menos, não penso ‘ah, não tenho férias’, quando é uma questão de vida ou morte. O vírus não é a vingança da natureza, é uma pulsão de morte. A prioridade máxima é não morrer dessa porcaria”.
De seu apartamento em Paris, onde passou o confinamento junto ao marido, a psicanalista fala por Skype à revista Ñ sobre política, sociedade, amor, sexo e o futuro do divã. Confira:
No seu Dicionário amoroso da psicanálise, a primeira entrada que aparece é “amor”. Freud colocou o amor no centro da experiência psicanalítica: que lugar ocupa hoje nesse contexto de pandemia?
Elisabeth Roudinesco: O amor é imutável, não vale a pena pensá-lo dessa forma, não é uma questão de contexto.
"Faço parte daqueles que pensam que o amor não desaparece. Não acredito na teoria do fim de tudo: da história, do amor, não existe o fim disso ou daquilo. A questão que surge neste momento de confinamento é mais a da sexualidade."
Porque as pessoas que não viviam juntas, mas que se encontravam, tiveram que se separar. Muitos problemas surgiram, como a violência doméstica, mais importante do que já era. Surge a privação de aventuras sexuais duante dois ou três meses. Mas tudo isso, para mim, é secundário. A privação de sexo é uma privação como qualquer outra. Sinto falta de bares, restaurantes, viagens...
E o que está acontecendo com a vida nas diferentes formas de família?
Elisabeth Roudinesco: Acho que precisamos voltar a pensar em uma análise mais social. Em uma situação dessas, as condições de vida têm um papel mais importante. Viver em 30 m² com seis pessoas é muito mais difícil do que viver com apenas uma pessoa nesse espaço. Agora, a violência na relação aumentou durante esse período de confinamento ou essa violência já estava aí? Acho que a segunda opção. Parece-me que o efeito do confinamento adicionou certa violência suplementar, e isso não é nada surpreendente, não é algo que vá destruir a família.
"Não acredito nos apocalipses, mas tampouco acredito que essa pandemia seja um evento que vá mudar tudo."
Não existe um antes e um depois do coronavírus?
Elisabeth Roudinesco: Não acredito nisso. O que se viu com muita clareza, por exemplo, é que o aquecimento global existe, pois, ao reduzir as emissões de gases, cortou-se a poluição. Algo deverá ser feito sobre isso. Mas não acho que o que estamos vivendo seja uma revolução. Partindo de uma hipótese otimista, o turismo de massa poderia ser reduzido, por exemplo: os transatlânticos, o litoral lotado... Mas, por outro lado, existem muitas pessoas de baixa renda que desfrutam desse turismo. É contraditório. Temos que reorganizar a distribuição de alimentos em larga escala, o consumo de carne, temos que voltar a ter uma alimentação mais saudável. Nós já sabíamos disso. E agora o vemos, é um dos efeitos visíveis.
Acho que o exemplo abominável de Bolsonaro, da destruição e do genocídio da Amazônia deve ter um impacto. Deveríamos perceber que isso não pode seguir adiante, assim como que Trump não pode seguir adiante. E deveríamos lutar contra as ditaduras. O governo chinês lidou muito bem com a crise do coronavírus; nesse caso, o governo ditatorial funcionou bem durante esse período, porque era necessário tomar decisões para restringir as liberdades. Mas não concordamos com a extensão desse capitalismo chinês que faz com que coexistam os horrores do pós-comunismo e do ultra-liberalismo, é realmente o pior dos regimes possíveis. Falar de medo em relação aos asiáticos é racista, xenófobo. A crítica ao governo é outra questão.
"Há algo fundamental: sabemos o que não pode seguir adiante: o crescimento da fortuna dos ricos e o crescimento da miséria dos pobres."
Os controles econômicos terão que ser introduzidos dentro do capitalismo e do liberalismo. Não acredito, ou não acredito mais, na revolução comunista. Eu acho que fracassou. Não deixo de ser de esquerda por isso. Portanto, não podemos sonhar em voltar ao que era. Mas também não podemos apoiar os excessos do liberalismo, pelo menos o financeiro. Por isso, penso que é preciso encontrar uma solução, social liberal, social democrática. Vivemos em um mundo multilateral, não é de forma alguma o mundo da China e dos EUA.
Há uma palavra muito importante hoje: confiança – ou falta de confiança. Em quem podemos confiar hoje? Nos médicos?
Elisabeth Roudinesco: Eu acho que faz sentido pedir a opinião dos especialistas em epidemias. Isto é, os médicos que hoje discutem na televisão. Não fiquei nada surpresa com o fato de cientistas e médicos estarem divididos: eles discordam entre si. Os debates entre cientistas são sempre contraditórios, violentos, como os dos intelectuais. Acho que o que aconteceu agora foi uma perda de confiança na elite política que nos fez confiar mais na elite dos médicos. Mas não durou muito. A partir do momento em que começaram a se contradizer, acabou. O irracionalismo existe: você acredita que mais de 50% dos franceses consideram as vacinas perigosas? E eu conheço pessoas assim, elas acreditam na natureza, no sentido mais estúpido do termo, em tomar pós, misturas, suco de banana ou suco de mel que “vão nos impedir de contrair doenças”. É o obscurantismo, e isso se desenvolve muito na França, em um país onde temos uma escola republicana, uma educação racional. É muito impressionante.
E há confiança nos políticos?
Elisabeth Roudinesco: Há uma crise muito séria nos países democráticos: a ruptura entre os povos e a elite. Existe populismo na Europa e uma perda de confiança do povo nos políticos. Os povos europeus, hoje, não são progressistas, estamos retrocedendo a um nacionalismo, com um perigo real de fascismo. Eu diria que hoje o povo europeu identifica a Europa com o mercado, com o capitalismo, com o liberalismo, porque nós fizemos uma Europa do mercado, precisamos sair disso e fazer uma Europa social. Eu diria, inclusive, que é uma crise mundial. Porque a eleição de Trump também faz parte dessa passagem para o populismo. Se Trump venceu nos Estados Unidos, isso significa que as pessoas também não confiam em políticos. O mesmo acontece no Brasil, na Inglaterra, onde Boris Johnson não é um clássico eleito, o Brexit é o populismo. Vocês, na Argentina, tiveram ditaduras militares, então conhecem o perigo melhor do que nós.
Temos medo desse desejo de autoritarismo, de fascismo e, no fundo, de rejeição da classe política por parte do povo. Vimos isso na Itália com a escolha do populismo. Então, há uma grande crise de confiança. E o problema do futuro será como recuperar a confiança entre o povo e as elites.
Como é a batalha política na França contra o covid-19?
Elisabeth Roudinesco: Considero que o governo de Macron, apesar de tudo o que se pode criticar, lidou muito bem com a situação. Fiquei impressionada com esse debate insensato na Europa de querer competir: “Foi melhor na Alemanha, na Suécia ou aqui, ou é pior não sei onde”. Essa típica autoflagelação francesa pareceu-me ridícula, ou uma reação nacionalista. Revelou algo que me perturba: que a Europa ainda precisa ser construída, que não existe. Que os alemães tenham lidado melhor com essa situação não é porque a Alemanha seja melhor; não é porque seu serviço de saúde seja melhor; lidou melhor com isso porque o poder é dividido em regiões. Estamos presos entre duas tendências; por um lado, seria melhor fazer demais do que não fazer o suficiente; por outro lado, o covid é imprevisível, então há quem diga que deveríamos tê-lo prevenido... Não podemos imputar um crime a um governo democrático.
Na Europa, a França é o único país em que o governo foi denunciado. Não há oposição aqui, Macron chegou ao poder com a sociedade civil e hoje temos uma clássica crise de partidos políticos. O que está como oposição é Marine Le Pen, ou seja, o fascismo... Eu não aprovo a política cultural de Macron, é algo que ele não entende muito bem. Sua política educacional também não está indo bem, mas também acho que sua política internacional é relativamente boa. Estamos em uma situação de crise, e não é hora de colocar-se contra o governo. Não aprecio de forma alguma essa onda, que vem da extrema esquerda e se encontra com a extrema direita. O governo cometeu erros evidentes: como não tínhamos máscaras, eles disseram que eram inúteis.
Em segundo lugar, eu não saio de férias a lugar nenhum porque sou consciente e fiquei bastante surpresa com as reações das pessoas sobre esse assunto. Os franceses ficaram extremamente frustrados por não poderem sair de férias como sempre. Já que falamos de psicanálise, eles não podem se privar de um “tempo de desejo”. Não é tão grave privar-se de férias. Não é tão grave não poder comprar todas as roupas que se deseja.
"Quando a vida e a morte estão em jogo, eu, pelo menos, não penso “ah, não tenho férias”. O vírus não é a vingança da natureza, é uma pulsão de morte. A prioridade máxima é não morrer dessa porcaria. Na verdade, tenho alguns amigos que morreram disso."
Sim, a quarentena é longa, mas necessária. Eu trabalho em casa, só vou ao supermercado e levo minha cachorra para passear. Não posso ver ninguém além da minha família mais próxima. Não vejo meus amigos, minha irmã, meus sobrinhos. – Pois então? Não vejo ninguém há dois meses. Atenção, temos Skype, temos Zoom, faço conferências, entrevistas. Não é algo que eu gosto. Mas temos muita sorte, temos tecnologia para poder ver as pessoas de maneira diferente. Não estou dizendo que é maravilhoso, mas, se você quiser, comparado à vida e à morte, não é nada. Não é a guerra do Iraque. Não é uma guerra, não há bombas. O que é muito difícil, para muitas pessoas, é a abstração. Você precisa raciocinar para perceber que o vírus é perigoso. Não se vê. Eu acho que é isso que explica por que foi preciso proibir, porque acho que muitas pessoas são muito ignorantes, há um obscurantismo muito significativo na França, elas acreditam em rumores.
Também temos uma explosão de conspirações, de pessoas que acreditam em coisas que não existem. Elas estão convencidas de que o vírus foi inventado pelos chineses para nos atacar. Vimos surgir um perigo amarelo, uma espécie de terror em relação aos asiáticos, que chegariam em ondas na Europa, e também houve um surto de anti-semitismo que se usou contra o Macron. Chegaram a falar do vírus como um macronovírus, é um ressurgimento do anti-semitismo, porque é o vírus judeu, é sempre culpa dos judeus. Desta vez, não foi possível dizer que a culpa era dos árabes, dos muçulmanos. Ouvir isso em Paris é incrível. Comerciantes chineses foram atacados verbalmente, insultados. Isso do vírus judeu surgiu de uma acusação contra Macron porque ele trabalhou no Banco de Rothschild. Vimos o ressurgimento de anti-semitismo, xenofobia, conspirações, irracionalismo... e o populismo que cresce com Marine Le Pen. Estão procurando um bode expiatório. Desta vez, ele não é muçulmano, então o bode expiatório na França foram os bancos, os judeus, o capitalismo, Macron e os chineses.
Em relação ao trabalho psicanalítico em meio à pandemia, o que acha da terapia on-line? Funciona?
Elisabeth Roudinesco: Já funcionava antes. Há 20 anos os pacientes não são os mesmos. Vivemos em um mundo em que muitos viajam. Isso significa que podemos usar o Skype na terapia psicanalítica, por exemplo, com alguém que está viajando. O que é certo é que não se pode fazer uma análise totalmente on-line, mas, sim, usá-la com pacientes que já conhecemos antes. É necessário um contato na vida real. É útil, não é desejável, mas existe. O que é surpreendente é que existem muitas pessoas que não querem fazê-lo, que preferem fazer uma pausa, que, durante o tempo que for necessário, preferem parar ao invés de fazer sessões por Skype. E o mesmo vale para o ensino; eu não gosto de fazer uma hora de aula virtual. O contato humano é fundamental e, além disso, não há bares! Quando termino uma conferência, gosto de ir comer em um restaurante!
E isso pode fazer com que se deixe de usar o divã?
Elisabeth Roudinesco: Não, não, o divã está sempre aí. É um erro pensar que a psicanálise é apenas o divã. Foi um erro acreditar nisso, um erro das pessoas sectárias.
"Devo lembrar que a psicanálise pode ser feita de todas as maneiras. É um sectarismo limitá-la ao divã, assim como acreditar que a terapia psicanalítica deve ser silenciosa. E sempre acreditei nisso: um analista deve falar, ter empatia, fazer sessões relativamente longas com, no mínimo, meia hora. E, acima de tudo, o divã é uma escolha do paciente."
Quando estamos formando um psicanalista, quando é uma análise didática, então, sim, porque é preciso passar pela introspecção. Na verdade, eles fazem isso espontaneamente. Mas, no que diz respeito ao paciente, isso pode ser feito pessoalmente ou com o divã; é preciso dar-lhe total liberdade de escolha. E outra coisa que eu já disse e repito é que as terapias psicanalíticas são longas demais. Sou a favor de terapias muito mais curtas. Mas, em relação às sessões curtas, sou contra há muito tempo.
O que eu sempre notei é que os argentinos podem passar a vida toda em análise. Seguem com um analista por um ano, depois fazem com outro e assim por diante. A psicanálise é uma paixão dos argentinos. Mas ficar muito tempo com o mesmo analista torna as terapias muito longas. Por outro lado, há pessoas que têm a necessidade de nunca parar e sempre estar com o mesmo analista. Nesses casos, dentro dessa terapia, deve-se distinguir dois momentos da psicanálise. O momento em que existe uma verdadeira terapia psicanalítica e, por outro lado, o momento em que alguém que estava em análise deseja retornar, mesmo 10 anos depois. Mas, nesse caso, não volta da mesma maneira. Pode voltar uma vez a cada 15 dias ou vir na frequência que quiser, mas não é mais terapia psicanalítica. Podemos chamá-lo de uma forma de análise, talvez uma atualização, mas não se pode manter um paciente duas vezes por semana no divã por 20 anos, isso é completamente ridículo. É um fenômeno sectário.