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sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Universidades privadas, biopoder e Capitalismo Cognitivo (Rodrigo Gueron)



Assuntos: biopoder, capitalismo cognitivo, crítica, rodrigo gueron, universidade.
Rodrigo Guéron

Ao ler o resumo do que foi dito num seminário das atuais mantenedoras das universidades privadas brasileiras, tive vontade de escrever um pouco sobre o tema. Trata-se de uma lista draconiana de ações que as mantenedoras pretendem empreender, por um lado, na estrutura de suas próprias instituições/empresas e por outro, como ação política junto aos poderes do Estado. Algumas medidas já podem ser verificadas nas práticas nestas instituições: a redução ao mínimo de aulas práticas e usos de laboratórios e equipamentos; controle sobre a produção criativa dos estudantes; e arrocho salarial sobre os professores que, no caso de algumas instituições do estado do Rio, chega ao extremo do desrespeito explícito a direitos básicos: salários atrasados, FGTS não depositado, 13º salário não pago, e assim por diante.

Nesses seminários, as mantenedoras condenam a priori qualquer tipo de fiscalização e regulamentação do MEC, chamam de “ideológica” a preocupação dos Conselhos de Medicina com o nível dos cursos, não mostram qualquer disposição em investir em pesquisa e propõem uma série de mudanças nas instituições sem que estas tenham qualquer preocupação pedagógica e/ou acadêmica.

O objetivo dessas ações, como era de se esperar, é reduzir ao limite os custos de funcionamento, por um lado, e garantir o maior lucro possível, por outro. Mas, é preciso ter claro que essa operação só pode ser bem sucedida, do ponto de vista da ampliação do poder e do lucro dessas empresas, se for dirigida contra a capacidade produtiva e, sobretudo, o desejo produtivo, de professores, funcionários e alunos.

O que é ameaçador para as universidades privadas é exatamente a vontade dos alunos de terem aulas melhores, a aspiração por apoio à pesquisa e à criação, o surgimento de idéias, projetos, o desejo de desmembrar e superar os problemas, novas tecnologias, novos conceitos, expressões artísticas e formas de vida.

Em primeiro lugar, parece haver, em uma parcela das universidades privadas brasileiras, certa nostalgia do capitalismo industrial e do seu do modo de produção fordista, uma vez que seus donos não param de repetir que a universidade deve se submeter completamente ao que chamam abstratamente de “mercado”. Termo que aparece no discurso das mantenedoras como uma espécie de transcendente cultuado, numa mistificação espantosa para quem tem como tarefa administrar universidades. Ficaria assim estabelecido que a única função da universidade seria a de formar mão-de-obra para uma determinada forma de organização da produção tendo como horizonte possibilidades produtivas que estariam dadas de antemão. A vida universitária deveria, neste caso, se reduzir a uma preparação que seria quase como um “treinamento” (termo bastante recorrente) em função de um emprego pré-determinado, que estaria à espera do aluno “treinado” e/ou do “mais bem treinado”. Toda a atividade produtiva e toda a subjetividade de professores e alunos ficariam reduzidas a uma corrida de obstáculos por um diploma distintivo de superioridade social, e um posto de trabalho.

Por outro lado, como forma de poder, essas mantenedoras agem, de maneira bastante exemplar, da forma como o capitalismo contemporâneo opera. Não só porque lançam ações em bolsa, mas, sobretudo, porque funcionam como notáveis esquemas de controle e bloqueio do desejo de quem nelas trabalha e estuda. O próprio lema do “preocupemo-nos apenas com o mercado” é parte disso. Trata-se de uma espécie de terrorismo psicológico para capturar a subjetividade de estudantes e professores numa operação que não para de nos enclausurar em apenas uma forma de vida possível. As nossas potencialidades produtivas são assim esvaziadas, inclusive através do medo (de não encontrar um “lugar” no “mercado”), o que nos joga num processo de pura repetição e reprodução passiva.

Mas, esta contradição vai além, porque o caráter contemporâneo do capitalismo caracteriza-se exatamente por ser eminentemente cognitivo e afetivo, quer dizer, a produção de conhecimento, a produção tecnológica, mas também criativa, artística, plena de dimensão afetiva e virtual é, justamente, a que faz mover a economia.

Por isso, a idéia de que a universidade deva se sujeitar ao “mercado” acaba também esvaziando a capacidade produtiva desta mesma universidade. Pois, ao contrário, a universidade deve ser pensada como um dos pontos centrais da produção. A própria palavra “mercado” ficaria assim no seu devido lugar, qual seja, algo que só se forma como desdobramento do desejo e da ação produtiva das pessoas. Diferentemente do que se costuma dizer, a produção vem antes do mercado, sobretudo porque ele mesmo é produzido e não para de ser alterado, reinventado etc. Ou seja, mesmo do ponto de vista da compreensão mais banal do capitalismo – e para fazê-lo funcionar – o discurso dos donos de universidades privadas é insustentável: quando, supostamente, conseguirem adaptar, através de suas fórmulas draconianas, suas universidades ao “mercado”, este já seria outro.

O problema todo é que, na atual estrutura, para se tornar isso que as universidades deveriam ser, ou seja, produtivas e mesmo o centro da produção, seria necessário um investimento que as tornaria pouco rentáveis em uma bolsa de valores, da mesma maneira que a demanda social por casas nos Estados Unidos (que não deixou de existir mesmo com a derrocada do Estado de Bem-estar Social), tornou os bancos pouco rentáveis do ponto de vista do capital e das expectativas especulativas de lucro. Mas, obviamente este é um problema dos bancos e do poder, e não de quem desejou ter uma casa; o mesmo vale para a aspiração social de estar numa universidade.

É fundamental compreender que o caráter cognitivo do capitalismo, o esvaziamento do capitalismo industrial – e com isso da antiga classe operária – foi, em primeiro lugar o resultado das lutas sociais. A condição predominante de “trabalho morto”, a divisão hierárquica “trabalho intelectual x trabalho braçal” do ambiente disciplinar – muitas vezes militarizado – das fábricas, e a rigidez das disciplinas e da organização do ensino em função deste esquema, foram fatores que geraram as rebeliões de 68 e todas as novas formas de luta que atravessaram os anos de 1970. Em muitos países multidões passaram a ter acesso a universidade na mesma proporção que as melhorias das condições de vida da antiga classe operária fizeram com que ela aspirasse deixar o trabalho operário. Em 68, na França, Estados Unidos e Tchecoslováquia, muitos dos estudantes revoltosos eram filhos de operários e muitas das revoltas nas fábricas partiam de jovens. Depois de 68, a democratização do acesso ao ensino tornou-se ainda mais ampla. Assistimos então a uma luta para reunir trabalho e vida, desejo e produção. O neoliberalismo veio a seguir, como um projeto de poder do capital que se readapta e busca capturar, tanto quanto possível, as inovações. Neste momento, o capitalismo deixa de ser um “modo de produção” e passa a ser uma “produção de modos”: de modos de vida.

A princípio, esta democratização não chegou ao Brasil; mas a demanda por ela sim. Se o maior desejo era o de promover o reencontro entre trabalho e vida, produção e subjetividade – impossível na rigidez e hierarquia das fábricas – o capitalismo tratou de reestruturar suas formas de poder de modo a, por um lado, coordenar estratégias de produção de formas de vida e subjetividade; e, por outro, controlar e até interditar a produção de novas formas de vida. Em outras palavras, o capital precisa hoje, mais do que nunca, do desejo produtivo das pessoas; mas este desejo representa, também como nunca, um grande perigo para o capital.

É exatamente esta a situação no interior de nossas universidades privadas. Elas cresceram diante de uma demanda, um desejo social reprimido, por estar na universidade. Desta demanda dependem os lucros destas instituições/empresas; mas, quase tudo o que esta aspiração significa, do ponto de vista dos desejos e do desenvolvimento subjetivo dos que entram na universidade, é uma grande ameaça para elas. E são nestas brechas que devem se dar as lutas de professores, estudantes e funcionários em geral, na universidade hoje. Trata-se, em primeiro lugar, de lutar a partir dos territórios, dos locais de trabalho, que devem ser encarados por nós como comunidades produtivas..........

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