Miguel Sousa Tavares estava há sete anos sem escrever um romance mas a pandemia obrigou-o a voltar à ficção com Último Olhar
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O DIÁRIO DE NOTÍCIAS -PORTUGAL-LISBOA GMG-João Céu e Silva-NOS OFERECE UMA ENTREVISTA COM MIGUEL S.TAVARES ,face seu novo livro.
O personagem principal do novo romance de Miguel Sousa Tavares recusa ser um "estorvo" só porque é velho. O retrato de um crime social a que se assistiu há poucos meses em Portugal e noutros países, quando as autoridades puseram os idosos fora da lista dos prioritários para a vacinação em nome de uma eutanásia etária. Um personagem que já vivera a Guerra Civil espanhola e estivera nos campos de concentração alemães, tragédias a que sobreviveu.
"Daqui a uns anos, não sei se seremos capazes de lembrar aquilo porque passámos nestes últimos meses de tão surreal que é: as máscaras, a distância social, as pessoas trancadas em casa, os filhos sem poderem ir à escola, o teletrabalho, o não nos cumprimentarmos nem abraçarmos." Quem o diz é Miguel Sousa Tavares, que acaba de publicar um novo romance, Último Olhar, onde a pandemia é a personagem principal, rodeada de outras que constroem com as suas vidas um retrato de uma situação mundial que surgiu de forma inesperada. Por isso mesmo afirma: "As verdadeiras tragédias vêm sempre sem aviso."
Logo à primeira página está a origem do romance: "O veneno da China". Para o autor não é difícil concluir: "Se não fosse a covid, este livro não existia. Foi um "romance imprevisto", afinal há sete anos que não publicava um." Revela que tem dois ou três encravados: "Não consigo planear romances, mas neste fui como que obrigado a escrever a partir do momento em que percebi que era mais do que uma epidemia sanitária, que era também moral. Achei que um romance ia mais direto ao coração das pessoas do que outro registo." Além do vírus e dos seus efeitos sobre a sociedade, o protagonista é Pablo. Um "velho" que atravessou a Guerra Civil de Espanha, esteve num campo de concentração durante a II Guerra Mundial, e que leva os leitores do princípio ao fim com a sua história de vida. Pelo meio, meia dúzia de personagens desenham o que a humanidade tem assistido e vivido desde há ano e meio.
Há uma particularidade narrativa que se destaca na segunda metade de Último Olhar, as passagens onde o sexo são um cenário frequente. Para Sousa Tavares, que recusa caracterizar essas páginas como eróticas mas sim de sexo mesmo, a resposta é simples: "Aconteceu naturalmente e acho que o sexo também é um sinal de vida. Além de que vinha a propósito, fazia sentido e humanizava. Se não viesse, não punha." Justifica: "O livro tem muita coisa sobre morte." Em sua defesa recorda as palavras de Millôr Fernandes quando escreveu uma crítica sobre o Equador e questionava os escritores brasileiros dizendo "O Miguel escreve sobre sexo sem medo porque na vida também há sexo". A situação mais inesperada, confessa, é a "cena de sexo no campo de concentração, de que nunca ninguém se lembraria". Como "veio a propósito", a pergunta que fez foi "porque não?"
É um romance que se passa em Espanha. Quis distanciar-se da nossa realidade?
Não foi esse o caso, antes porque o detonador do romance é um acontecimento passado em Espanha: o apedrejamento de um autocarro que levava idosos infetados pela covid. A partir daí senti necessidade de o situar de forma correta.
A covid será o segundo grande acontecimento deste início de século a seguir ao 11 de Setembro de 2001?
Sim, sem dúvida, o 11 de Setembro e a covid serão os dois momentos disruptores deste milénio. Eu comecei a escrever o romance em março de 2020, no início da pandemia, e esse acontecimento em Espanha veio ao encontro daquilo que antevi: que os velhos iriam ser as grandes vítimas e que a sociedade estava pronta a descartá-los. Foi essa perceção que me fez pensar que existe um lado de instinto de sobrevivência que estabelece uma fronteira muito ténue com a barbárie. Que foi muito nítido nesta pandemia e mesmo em Portugal, pois após o Presidente e o primeiro-ministro terem falado sobre a questão, foi preciso que o almirante das vacinas se impusesse para que os velhos passassem à frente de todas as corporações que estavam a ser vacinadas antes: polícias, bombeiros, militares, magistrados, etc.. Foi preciso que alguém dissesse "não" e que o primeiro critério deveria ser o de salvar vidas e, portanto, aqueles que mais morriam por causa do vírus: os velhos.
Uma situação impensável?
Sim. Foi estabelecido tacitamente que os velhos não iam para os hospitais ocupar camas necessárias porque vão morrer de qualquer maneira e também não iam ser vacinados porque há poucas vacinas e temos de começar pelos que têm mais hipótese de sobreviver. Foi a partir desse momento que pensei: "então a nossa sociedade investiu tanto em prolongar a vida das pessoas e chega a um ponto em que descarta os mais velhos e só quer que fiquem trancados em casa ou nos lares, sem acesso aos filhos e netos, porque se saírem à rua são um perigo público?" Que raio de sociedade é esta que construímos?
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