Por Soledad Barruti | Tradução de Tadeu Breda, no Blog da Editora Elefante |
OUTRAS PALAVRAS nos brinda com este artigo, aliás este texto marca o lançamento, pela Editora Elefante — parceira de Outras Palavras — de Pandemia e Agronegócio.Vale ler e quiça adquirir o livro.Como vivemos e o quê comemos e sob quais condições? Vale!
Antibióticos, morcegos e a próxima pandemia
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Cozinhamos em nossas panelas as doenças de amanhã. Relação predatória com a natureza, abuso dos “aditivos” nas fazendas industriais e ambição do agronegócio tornam a Terra um lugar bizarro e cada vez mais perigoso
1.
“Sabemos que outra pandemia será inevitável. Está chegando. E também sabemos que, quando isso acontecer, não teremos medicamentos, vacinas, profissionais de saúde ou capacidade hospitalar suficientes”, disse Lee Jong-wook, então diretor da Organização Mundial da Saúde, em 2004. O discurso foi proferido quando o planeta tentava se recuperar do susto surgido com a gripe aviária, que eclodiu em Hong Kong em 2003.
O médico alertou para um fato muito difícil de ouvir: que um surto pior poderia acontecer a qualquer momento. Em 2009, por exemplo, quando outro vírus saltou de um porco para se tornar Influenza A que, a partir do México, alcançou o mundo inteiro; ou em 2012, quando a síndrome respiratória do Oriente Médio (Mers) emergiu dos camelos da Arábia Saudita, infectando pessoas em 27 países.
“Não devemos temer os mísseis, mas os vírus”, disse Bill Gates em uma palestra no Ted Talk em 2015, depois que o ebola quebrou os limites corporais de uma espécie de morcego, em 2014, para se converter em um pesadelo para os seres humanos.
“É uma emergência”, “Precisamos nos preparar”, “Precisamos controlar os vírus”: os documentos oficiais de várias agências das Nações Unidas, organizações globais como a Fundação Gates e vários governos estão cheios de advertências semelhantes. Mas nada foi feito para impedir a covid-19. Talvez porque em nenhum desses espaços de poder houve intenção de nomear de maneira clara e contundente o principal fator desencadeante dessas doenças: a relação abusiva e predatória que estabelecemos com a natureza, em geral, e com os outros animais, em particular.
Vacas, porcos, galinhas, morcegos, não importa de qual animal estejamos falando. Se não os extinguimos com destruição de seus habitats, os engaiolamos, acumulamos, mutilamos, transportamos, engordamos, medicamos e deformamos para aumentar sua produtividade. Forçamos os limites de seus corpos e anulamos seus instintos como se fossem coisas, por meio de técnicas ensinadas nas universidades, repetidas em conferências empresariais e testadas em laboratórios. Um negócio de bilhões de dólares.
Nunca andei de camelo ou visitei os mercados asiáticos, onde macacos, pássaros e tatus são vendidos vivos em pequenas caixas, mas visitei um bom número de fazendas industriais na América Latina — esses lugares de onde vem a comida que julgamos menos exótica e cruel, mais civilizada e mais segura. E nessas granjas aprendi que, em questões como ética, empatia e saúde pública, a diferença entre o que é oferecido em Wuhan e o que preenche as gôndolas dos nossos supermercados é imaginária.
As pragas não são uma novidade, mas estão avançando: duzentas novas doenças infecciosas zoonóticas surgiram nos últimos trinta anos, e nenhuma é resultado da nossa má sorte.
2
Visitei Rosalía de Barón em 2011 enquanto fazia a pesquisa para meu livro Malcomidos. Ela, uma produtora de ovos da província de Entre Ríos, na Argentina, sabia perfeitamente: seu galinheiro era uma mina de ouro, mas tinha uma fraqueza: poderia desencadear uma praga a qualquer momento.
“Desde que sou assim, vivo entre os ovos”, disse, abaixando a mão até próxima do chão, quando entramos no galpão que continha cerca de quarenta mil galinhas em plena produção. Rosalía era uma mulher forte, quase 40 anos de idade, olhos azuis claros, cabelos loiros gastos e o orgulho de administrar um negócio próspero: oitenta caixas de ovos diários da melhor qualidade. Cerca de dez vezes mais do que sua própria fazenda produzia quando menina, no mesmo espaço. O truque? Concentração automatizada. O galinheiro moderno não tem terra, nem arbustos, nem sol, mas gaiolas de cerca de quarenta centímetros, onde as galinhas vivem por quatro anos, empilhadas em grupos de dez. As gaiolas estão umas sobre as outras e próximas umas das outras, tornando o local um labirinto completamente coberto de penas, bicos e patas que, à primeira vista, é impossível saber a qual galinha pertencem.
Tente imaginar: dez galinhas esmagadas em um espaço onde nem mesmo uma única delas entraria confortável; não há como bater as asas, deitar-se, virar-se ou satisfazer qualquer um de seus requisitos biológicos além de comer, defecar e dar um ovo por dia.
Quando as galinhas estão amontoadas, elas só conseguem subir uma na outra, se enroscar e enfiar a cabeça pelas barras até que os pescoços estejam cheios de feridas, em carne viva. A situação é tão estressante que, dentro de semanas, se tornam canibais. Para impedi-los de comer um ao outro, alguns dias depois de nascerem, as galinhas têm a ponta do bico amputada. Assim, os bicos crescem achatados, como se tivessem atingido uma parede com força.
Que não se matem, mantendo a produção ao máximo: esse é o objetivo. Para alcançá-lo, os produtores lançam mão desse tipo de intervenções: mutilações, controle de luz, sons constantes, vários dias de fome e sede — neste caso, para que sobrevivam apenas as mais fortes. São quinze ou vinte dias sem comida ou água. As galinhas morrem como um brinquedo cuja bateria vai se acabando: consumidas, deitadas uma em cima da outra, com olhos secos, bicos abertos, emitindo um suspiro quase inaudível. Para as que sobrevivem, a ração é renovada e, no dia seguinte, mágica: um novo ovo, o cacarejo infernal; e também medo, carne podre, o cheiro de morte em vida.
Visitar fazendas industriais pela primeira vez tem algo de monstruoso: nem os olhos, nem os pulmões, nem a mente estão preparados para apreender o que acontece lá. O que você vê, o que se ouve dos manipuladores de animais — tão normais quanto um vizinho, um tio, um dentista. A informação chega em etapas: a sistematização da crueldade, a negação da dor (que é evidente). A única justificativa para tudo são as leis do mundo do dinheiro, tão absurdas, tão perversas.
Theodor W. Adorno disse que era preciso olhar para os matadouros e dizer “são apenas animais” para entender a origem de Auschwitz. Diante dessas granjas, tão naturalizadas, tento entender como chegamos até aqui.
Rosalía explicou o que sabia e me disse algo que achava fascinante: “Eu só trabalho duas horas por dia, o resto é feito sozinho”, e apertou um botão que fez o galinheiro começar a se mover. Abaixo das gaiolas, as esteiras transportavam os ovos para o local onde seriam medidos e embalados. Outras esteiras transportavam as fezes, que serão enterradas em uma fossa a poucos metros do galpão. Na mesma coreografia da máquina, bebedouros são reabastecidos e alimentadores se enchem de milho, vitaminas e corante para as gemas alaranjadas que o mercado está pedindo hoje em dia. A precisão da fábrica parecia mostrar que tudo estava sob controle. Os materiais frios e duros cobriam todo o processo com assepsia, apesar da merda, dos fluidos, dos olhos pustulentos e das penas voando.
“No entanto”, continua Rosalía, “nada é tão fácil”. A fazenda tinha um perigo à espreita. “Qual?”, perguntei. “As doenças. As galinhas parecem fortes, mas uma pode ficar doente, e isso seria o fim.”
Pensei nos dias em que as galinhas passam sem água nem comida: se resistem a isso, não são fracas, disse a mim mesma. Mas aprendi imediatamente que não. Galinhas não sobrevivem a uma gripe. A gripe é o calcanhar de Aquiles.
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