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OS POETAS FALAM COMO O AR QUE CIRCULA:
A partir de um poeta que se ampara na Filosofia, Elton L.L.SOUZA nos traz os cheiros de outros poetas que circulam no ar,entre eles, M.de Barros.
Elton Luiz Leite de Souza- por Facebook
Há um poema de Manoel de Barros no qual ele diz: "Vi que tudo o que o homem fabrica vira sucata: bicicleta, avião, automóvel ... Até nave espacial vira sucata." E completa: “O que é verdadeiramente novo nunca vira sucata.”
Não só automóveis e celulares viram sucata : doze meses atrás , 2021 foi chamado de ano novo , e 2020 virou sucata. Hoje, é 2022 que recebe a etiqueta de ano novo, enquanto 2021 está virando sucata.
Se olharmos para o tempo com os olhos do poeta, veremos que não se encontrava então em 2021 o tempo novo tão desejado, assim como não está em 2022 o tempo que não vira sucata.
Mas onde encontrar esse tempo-embrião, esse tempo de minadouros?
Segundo o poeta, não é no produto criado que se encontra o novo, e sim no ato de criação. O rio só mantém seu fluxo vivo e avança se estiver umbilicado à nascente da qual continua a fontanejar, sendo criado.
O novo nunca pode ser representado por abstrações , pois ele vive nas singularidades concretas.
“2022” é uma abstração , uma convenção do calendário hoje vigente. Ao longo da história, porém, povos diferentes tiveram outras formas de contar o tempo segundo outros calendários.
Os povos originários , por exemplo, vivem muito mais próximos do tempo que não vira sucata, pois os indígenas não vivem o tempo sob números abstratos, e sim a partir dos acontecimentos singulares da própria natureza, segundo os ritmos do sol e da lua.
Os números são abstrações porque conseguem representar somente as quantidades, nunca as qualidades , os ritmos e as intensidades. Somente um tempo concreto, singular, qualitativo e intenso tem força para resistir a virar sucata, pois um tempo assim tem a potência da vida e de seus ritmos.
Mas onde encontrar esse tempo singular? Onde fica sua nascente, seu nascedouro, sua natência?
O poeta assim responde: os dias, os anos, os séculos, os milênios...tudo isso vira sucata. Mas o que nuca vira sucata é a aurora. A aurora é a nascente da qual brota o autêntico tempo novo.
E nós mesmos nunca viraremos sucata, não importa a idade que tenhamos, enquanto nos horizontarmos afetados por uma aurora . Para que, juntando forças, possamos “fazer amanheceres”, como ensina o poeta, apesar dessa noite longa...
Não somente em 2022, mas sobretudo no hoje , no aqui e agora, desejo a todas e todos necessárias auroras!
Uma aurora sempre vem para nos lembrar que todo dia é dia novo, e não apenas o 1º de janeiro!
“Erguer-se...
Como se ergue a aurora do seio da noite.”
(Homero)
“Durante as viagens sem rumo dos andarilhos,
eles são instalados na natureza igual se fossem uma aurora.” (Manoel de Barros)
E segue outro poeta:
PASSAGEM DO ANO
C. DRUMMOND DE ANDRADE
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O último dia do ano
Não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
E novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
Farás viagens e tantas celebrações
De aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia
E coral,
Que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
Os irreparáveis uivos
Do lobo, na solidão.
O último dia do tempo
Não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
Onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
Uma mulher e seu pé,
Um corpo e sua memória,
Um olho e seu brilho,
Uma voz e seu eco.
E quem sabe até se Deus…
Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa, já se expirou, outras espreitam a morte,
Mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
E de copo na mão
Esperas amanhecer.
O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
O recurso da bola colorida,
O recurso de Kant e da poesia,
Todos eles… e nenhum resolve.
Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
Lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.