FOTO POR https://bit.ly/2Kp3ZqB
“Tendo eliminado todos os outros inimigos, o homem é agora o seu pior inimigo.
Ao terminar com todos os seus predadores, o homem é o predador de si mesmo.”
(Garrett Hardin)
VALE LER E PONDERAR......
As plataformas digitais são, hoje, a principal ferramenta de controle e de erosão da Democracia em um mundo à beira do colapso climático. A aposta na metamorfose da civilização poderá ser a única saída à servidão e à cegueira coletiva
https://bit.ly/2Kp3ZqB
A história da humanidade é uma sucessão de modos de viver patriarcais, caracterizados pelo desejo insano de controle, dominação, superioridade, guerra, luta, apropriação da verdade e destruição dos recursos naturais, isto é, pela pulsão de morte que permeou toda a trajetória do Homo rapiens – termo apropriadamente utilizado pelo filósofo britânico John Gray, para quem “a súbita extinção de modos de vida é a norma humana” – nos últimos seis a sete mil anos. Este nosso condicionamento ao patriarcado teve início, segundo a socióloga austríaca Riane Eisler, depois que houve a grande bifurcação cultural no neolítico, quando os povos guerreiros indo-europeus fizeram uso das armas para promover a passagem da “sociedade de parceria”, até então predominante, para a “sociedade de dominação” (O Cálice e a Espada: nossa história, nosso futuro, Palas Athena, 2007). Foi a partir daí que as dimensões cultural e biológica foram dissociadas pelo animal humano, afastando-se ele de sua condição natural, e, com isso, o patriarcado passou a orientar todo o tortuoso processo civilizatório. Abordei recentemente este assunto, tratando de suas implicações no nosso presente, em um artigo intitulado Complexidades emergentes.
No entendimento do historiador francês Jacques Attali, que converge em muitos pontos com o de Eisler, o processo civilizatório foi guiado por três principais formas de poder ou “ordens políticas”, como ele chama, que coexistiram e se alternaram para controlar as riquezas, os territórios e o conhecimento e, assim, forjar o desastroso curso da história humana, culminando com a atual situação de crise planetária que está nos arrastando para um colapso civilizatório. Inclusive, não são poucos os cientistas que hoje já cogitam a possibilidade de um autoaniquilamento. São elas: Ordem Ritual (poder religioso, surgido há 30 mil anos), Ordem Imperial (poder militar, há 6 mil anos) e a Ordem Comercial (poder do mercado, 1290 a.C. aos dias atuais). Tanto a Ordem Imperial quanto a Ordem Comercial são expressões típicas do patriarcado, da “sociedade de dominação”, tal como concebida por Eisler. A primeira, em razão da força das armas, e a segunda, pelo domínio no campo das subjetividades. A Ordem Ritual, conforme descrita por Attali, expressa mais um modo de vida orientado pela transcendência do que uma manifestação de poder que possa ser enquadrado como uma força de natureza patriarcal.
A proposta aqui, então, é refletir um pouco sobre esta forma de expressão patriarcal ainda prevalente, a Ordem Comercial, que se destacou sobre as demais, especialmente nos últimos cinco séculos, e ainda deve prevalecer por um bom tempo. Compreender como esta ordem política, vinculada ao fetiche da mercadoria, tornou-se hegemônica, moldou e continua a moldar nosso modo de viver e vem se reinventando nos últimos vinte anos, sob o influxo dos algoritmos, nos ajuda a projetar os graves riscos de profunda regressão para as próximas décadas e nos convoca a pensar, com urgência, como nos libertarmos desse condicionamento milenar e imaginarmos uma sociedade fora da arena patriarcal autodestrutiva.
A longa história da Ordem Comercial
De acordo com Attali, os primeiros esboços de democracia de mercado remontam a doze séculos antes de Cristo. Naqueles tempos longínquos, “mais de cinquenta impérios convivem, combatem entre si ou se esgotam”. Nessa mesma época, “algumas tribos vindas da Ásia se instalaram no litoral e nas ilhas do Mediterrâneo”. Diante do ambiente de profunda degradação social gerado pela força da Ordem Imperial, elas perceberam que “o comércio e o dinheiro são as suas melhores armas. Mar e portos, os seus principais terrenos de caça”. A partir de então, a Ordem Comercial foi, gradualmente, se estabelecendo como uma eficiente forma de controle, dominação e manutenção da ordem entre os humanos.
No entanto, é no ano de 1492, considerado por muitos historiadores um ano singular – não só pela descoberta do “novo mundo”, mas por seus desdobramentos no contexto mundial –, que a Ordem Comercial se sobrepõe com mais vigor sobre as demais. Os muitos eventos combinados que ocorreram em 1492 forjaram o nascimento, imbricado, do Estado-nação e da economia de mercado, iniciando o longo período em que a humanidade passou a ser conduzida pelas forças resultantes dessa simbiose, a chamada democracia de mercado, que aparenta aproximar-se do seu ocaso na contemporaneidade.
Foi em decorrência desse entrelaçamento orgânico entre Estado e mercado que, gradualmente, surgiu a sociedade de mercado, deixando para trás os absolutismos medievais. A partir de então, a Ordem Comercial assumiu o protagonismo da História, antes sob a duradoura hegemonia das Ordens Ritual e Imperial. Na avaliação de Attali, 1492 “é considerado como data importante não apenas por marcar a descoberta fortuita de um novo mundo enquanto se procurava outra coisa, mas também por condicionar e esclarecer o presente”. Para ele, “é o ano no qual a Europa se torna o que denominamos um Continente-História, capaz de impor aos demais povos um nome, uma língua, uma maneira de contar sua própria História, impondo-lhes ideologia e visão do futuro”.
Attali assim descreve o ano cujos eventos mudaram o curso da História: “a partir de 1492, a Europa promove-se a senhora de um mundo a ser conquistado. (…) Novos nômades, os europeus impõem ao planeta sua visão de História, sua criatividade, suas línguas, seus sonhos e suas fantasias. É na Europa que a economia mundial vai concentrar suas riquezas. Tudo isso não ocorre apenas pelo desvendamento de um continente. Em 1492 acontecem inúmeros outros eventos, na Europa e em outros lugares, cuja influência sobre a nova ordem mundial ultrapassa de longe a da viagem de Colombo. Acontecimentos maiores ou apenas simbólicos formam uma totalidade complexa, um ano quase único, no qual a Espanha desempenha papel espantosamente privilegiado. Cai o último reino islâmico da Europa ocidental; os últimos judeus são expulsos da Espanha; a Bretanha acaba por tornar-se francesa; a Borgonha desaparece para sempre; a Inglaterra sai de uma guerra civil. (…) A ordem econômica mundial transforma-se.”
Estes e outros eventos ocorridos em 1492 assentaram a ideologia do chamado “novo mundo”, na qual, segundo Attali, a Europa impôs uma nova ordem política sob três domínios: o da transcendência (Pureza), o do espaço (Estado-nação) e o do tempo (Progresso). O sonho de pureza serviu para a Europa desprender-se de suas raízes orientais, perder o que ainda tinha de tolerância, irradiar seu novo ideal para o Ocidente e, assim, justificar as expulsões, massacres e extermínios dos impuros (o século XX foi o ápice dessa busca insana por pureza). O sonho do progresso viabiliza-se com o desaparecimento dos impérios medievais e o surgimento do nacionalismo impulsionado, de um lado, pela razão de Estado e pelo homem político moderno e, de outro, pelo mercado e pela visão econômica de mundo. As monarquias absolutistas sucumbiram diante dessas novas forças e as instabilidades da civilização passaram a ser resolvidas, doravante, pela via do totalitarismo de Estado. Assim se estabeleceu o novo motor da História: um patriarcado revigorado, desta vez aprimorado sob a forma de democracia de mercado, a qual exerceu prevalência sobre o modus vivendi nos últimos cinco séculos.
Vale ressaltar que a expressão “democracia de mercado” é ilustrativa e, portanto, comporta várias representações. Comumente ela é mais associada ao período pós-Segunda Guerra Mundial, quando se alcançou uma curta experiência de capitalismo combinado com Estado de bem-estar social, o tal sonho irrealizável do “capitalismo democrático” que os americanos tanto desejaram impor ao mundo. No entanto, prefiro utilizá-la para caracterizar o modo de vida hegemônico dos mais recentes quinhentos anos de História, como o faz Attali, compreendidos entre os acontecimentos na Antuérpia da imprensa pujante de 1500, considerada o primeiro centro financeiro da Europa, e o que acontece, desde 1980, no Vale do Silício dos algoritmos que orientam o modo de viver atual e que se encarregaram de levar a financeirização ao resto mundo. Estes dois núcleos comerciais, como os demais que os entremearam (Gênova, 1560; Amsterdã, 1620; Londres, 1788; Boston, 1890 e Nova Iorque, 1929) e também aqueles que os antecederam (Bruges, 1200 e Veneza, 1350), cada qual, a seu modo, utilizaram ferramentas de transmissão de dados e de indução do comportamento humano para impulsionar os ideais greco-judaicos do progresso, da razão e do individualismo, os mitos que sustentaram o patriarcado de mercado da era moderna e ainda o sustentam na contemporaneidade.
Seguindo os parâmetros de Attali, se 1492 pode ser considerado o marco inicial da longa hegemonia da sociedade de mercado, quando a liberdade da política entrelaçada à do capital se consolida como principal vetor da História, 2020 tem muitos elementos para se revelar no futuro, quando os emblemáticos tempos atuais forem interpretados e registrados, o ano em que se encerra o longo ciclo da democracia de mercado. A irrupção da covid-19 abriu espaço para um “novo normal” e, assim, parece ter lançado a última pá de cal para selar a disjunção entre mercado e democracia, que já vinha sendo gradualmente minada desde a chegada da doutrina neoliberal, a partir dos anos 1970. A pandemia do coronavírus representa um desses raros eventos de escala planetária que aceleram (ou retardam) e mudam o curso da História. Por isso, 2020 certamente será um ano que despertará o interesse de muitos pensadores, sobretudo do campo das ciências sociais, para se entender o tipo de sociedade que emergirá nas próximas décadas.
Pelo menos dois aspectos saltam aos olhos quando observamos como a pandemia afeta a ordem política mundial e dizem muito sobre como esta será reconfigurada nos próximos anos. O primeiro é como alguns países asiáticos como China, Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Singapura e outros conseguiram, por meio dos algoritmos, que já fazem parte do cotidiano e da cultura destas nações, administrar a pandemia em seus territórios com uma espantosa efetividade. A China, por exemplo, país onde o capitalismo de Estado está funcionando a pleno vapor, mesmo tendo sido o epicentro da pandemia (o primeiro país a ser afetado), representando 18,3% da população mundial, teve apenas 0,45% das mortes provocadas pela covid-19 no mundo, enquanto os Estados Unidos, ainda considerado por alguns o centro de inovação do sistema capitalista, com 4,3% da população mundial, respondem por 20% das mortes do globo, provocadas pela covid-19 (Fonte: John Hopkins University – https://coronavirus.jhu.edu/map.html, acesso em 15/10/2020).
O segundo aspecto é o acirramento das chamadas “guerras híbridas” – o uso combinado de armas políticas, convencionais, comerciais e, sobretudo, cibernéticas, com o objetivo de desestabilização de governos, que se sofisticam a cada dia – entre as nações desenvolvidas, amplificadas pela crise econômica e financeira desencadeada pela pandemia e, em especial, pela postura furtiva do presidente Donald Trump. Este cenário beligerante é um dos sintomas de que a democracia liberal estadunidense, o chamado capitalismo democrático que sustentou o imperialismo dos Estados Unidos desde 1890 e garantiu razoável estabilidade à ordem política mundial no pós-Segunda Guerra Mundial, parece estar se aproximando do seu declínio irrefreável dentro do seu próprio território. O ambiente de degradação política e institucional que os americanos enfrentam atualmente parece confirmar o prognóstico apontado por Gray tempos atrás: “o perigo para os Estados Unidos é que, confrontados com um comparativo e logo, talvez, absoluto declínio econômico, uma epidemia de crime incontrolável e instituições políticas fracas ou paralisadas, vão ser levados mais e mais na direção do isolamento e da desordem. Na pior das hipóteses, enfrentam uma metamorfose que fará deles uma espécie de proto-Brasil, com o estatuto de uma potência regional ineficaz mais do que de uma superpotência global.”
Dentro dessa nova (des)ordem política mundial, amplificada pela pandemia, o capitalismo vem, mais uma vez, se reinventando para dar resposta às sucessivas crises econômicas e financeiras, agora com lastro nos algoritmos, e em uma direção que parece apontar para o declínio da democracia de mercado, confirmando o diagnóstico dos professores de ciência política em Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, de que as “democracias podem morrer não nas mãos de generais, mas de líderes eleitos – presidentes ou primeiros-ministros que subvertem o próprio processo que os levou ao poder”. Ao mesmo tempo, as novas conformações políticas e econômicas indicam o fim do último império global, pois, parece não haver mais espaço na atual lógica da economia de plataformas, muito menos condições geopolíticas, para que outro país assuma este posto. De agora em diante, o mundo provavelmente ficará mais horizontalizado, com algumas potências regionais – orbitando ao redor de países como Estados Unidos, China, Rússia, Japão e de uma conflituosa União Europeia – descoordenadas e em crescente estado de tensão e instabilidade.
Mais uma vez, fenômenos contraditórios continuam a guiar a humanidade. De um lado, estamos diante da possibilidade de retornarmos, após milênios, a ter um mundo mais policêntrico e menos hierarquizado, o que representa o lado positivo das transformações em curso nessa incognoscível mudança de época histórica que a humanidade está vivenciando. No entanto, de outro lado, emerge um totalitarismo de mercado laissez-faire, virtual e difuso, com potencial nunca antes visto de acelerar ainda mais as instabilidades geopolíticas, que, aliadas às catástrofes ambientais, poderá nos arrastar para um colapso civilizacional, como já alertava o historiador inglês Eric Hobsbawm: “enfrentaremos os problemas do século 21 com uma coleção de mecanismos políticos dramaticamente inadequados para lidar com eles”. Para Hobsbawm, se a humanidade insistir em continuar no mesmo modelo civilizatório do século XX, como vem ocorrendo nas duas primeiras décadas deste século, “o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança da sociedade, é a escuridão”. E muitos elementos indicam que a nova sociedade de plataformas, que emergiu nos últimos anos, caminha rumo ao abismo.
Da democracia de mercado ao capitalismo de vigilância
As pessoas, em geral, interpretam a realidade em que estão inseridas como uma condição de natureza permanente e imutável, inclusive porque todas as grandes transformações já ocorridas nas sociedades se deram no transcurso de mais de uma geração e, desse modo, são imperceptíveis aos nossos sentidos. É por isso que hoje não conseguimos, por exemplo, ver alternativas à visão econômica de mundo imposta pelo sistema capitalista. O filósofo britânico Mark Fisher afirmava que nós somos moldados por mecanismos que nos fazem acreditar, diante de tantas evidências apocalípticas, ser “mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Esta mesma percepção é mais forte ainda em relação ao modo de vida patriarcal que aprisiona nossas mentes há milênios. No entanto, Fisher recomenda uma boa estratégia para sairmos desse condicionamento mental. Segundo ele, “o realismo capitalista só pode ser ameaçado se for de alguma forma exposto como inconsistente ou insustentável, ou seja, mostrando que o ostensivo ‘realismo’ do ‘capitalismo’ na verdade não tem nada de realista”.
LEIA TODA MATÉRIA EM:https://bit.ly/2Kp3ZqB