Capturas Do Facebook
Por Anco Márcio Tenório Vieira
Anco Márcio T.Vieira Foto: Rafael Furtado/Folha de Pernambuco * |
Foto: Penélope Araújo/G1 |
Durante as manifestações que os artistas e intelectuais pernambucanos promoveram pela restauração e, por decorrência, pela reabertura do Teatro do Parque, lembrei-me que em conversa com um parlamentar holandês, em fins da década de 90, ouvi dele que nenhuma obra pública é aprovada pelas instâncias legislativas da Holanda (mesmo existindo orçamento para tal) se o proponente do projeto
não apresentar a fonte que irá promover a sua manutenção pelos próximos dez anos.
Alguns poucos anos depois dessa conversa, o Teatro do Parque foi fechado pela Prefeitura da Cidade do Recife. Não era uma interdição técnica, de poucos dias, visando reparar uma tubulação de ar-condicionado, promover a troca de lâmpadas e refletores, ou mesmo fazer uma dedetização do espaço. Pelo contrário: era uma interdição radical — uma restauração —, promovida quando o imóvel está fechado e abandonado ou, no caso, completamente degradado pelo tempo. Estávamos em 2010, no segundo ano da gestão do então prefeito João da Costa. Em março de 2011, enquanto o Teatro do Parque permanecia fechado, sem projeto e, por extensão, sem nenhuma data prevista para o início dos trabalhos de restauração (o que significava dizer que os seus problemas estruturais continuavam se agravando de maneira célere), o prefeito inaugurava, em Boa Viagem, com pompas e circunstâncias, o Parque Dona Lindu. Projeto assinado por Oscar Niemeyer, o Dona Lindu foi inicialmente orçado em 18 milhões de reais, mas concluído ao custo de 37 milhões. O dobro do que fora inicialmente licitado três anos antes. Nada de extraordinário, considerando que no Brasil os técnicos (supostamente competentes) dos órgãos municipais, estaduais e federais sempre erram no orçamento das obras; e erram sempre para cima: dobrando, triplicando ou quadruplicando os seus valores iniciais.
Foto: Reprodução / TV Globo |
Bem, juntando alhos com bugalhos e olhando os fatos em perspectiva, faço aqui algumas indagações sobre os episódios acima. Primeiro: lembro que quando as portas do Teatro do Parque foram fechadas em 2010, contabilizava-se 22 anos que o então prefeito Jarbas Vasconcelos entregara o Parque restaurado. A pergunta é: como os prefeitos que o sucederam — a saber:
Joaquim Francisco (1989-1990), Gilberto Marques Paulo (1990-1992), Jarbas Vasconcelos (1993-1996), Roberto Magalhães (1997-2000) e João Paulo (2001-2004; 2005-2008) — deixaram o Teatro ir se degradando a tal ponto que, em apenas duas décadas, foi necessário novamente interditá-lo e jogá-lo nessa UTI da construção civil que chamamos restauração? Por que as três gestões municipais que antecederam o fechamento do Parque (as duas de João Paulo e a de João da Costa) não sanaram os problemas que o Teatro já apresentava em 2001 (primeiro ano da gestão de João Paulo), mas, pelo contrário, permitiram que a sua deterioração se agravasse até o ponto em que selar as suas portas e privar a cidade de mais um espaço cultural, foi a única solução encontrada? (ironicamente, uma gestão que se dizia “popular” fechava o aparelho de cultura mais popular da cidade!) Só a guisa de comparação: quantas vezes, no último século (e não nas últimas duas décadas, como é o caso em questão), casas de espetáculo como o Carnegie Hall e a Ópera de Paris, ou museus como o Prado, o Louvre e o do Vaticano precisaram ser fechados para restauração?
Segundo: se, em 2009, a Prefeitura do Recife tinha R$ 37 milhões de reais para construir o Parque Dona Lindu, não teria sido mais racional (lembro que essa palavra não tem, nem nunca teve, muita simpatia junto aos nossos gestores públicos) lançar mão desse dinheiro para estruturar os aparelhos culturais da cidade que estavam avariados? De maneira bem prática e pensando do ponto de vista do homem comum: se o que eu ganho não dá para manter a casa que habito (pagar luz, água, IPTU, comprar material de limpeza, contratar jardineiro, pinta-la pelo menos a cada dois anos etc.), como eu lanço mão das minhas pacas reservas financeiras e compro uma casa na praia, duplicando as minhas despesas correntes?
Terceiro: se, como dissemos acima, não existia (e pelo andar da carruagem, ainda não há) dotação orçamentária que mantivesse (ou mantenha) os aparelhos culturais da Prefeitura em perfeito estado de uso (o que levou, em apenas duas décadas, o restaurado Teatro do Parque a ser novamente fechado), como construir um novo aparelho cultural? Antes de pensar em construí-lo (e eu penso aqui no que dissera o deputado holandês), os poderes executivo e legislativo do município não deveriam declinar de qual fonte viriam os recursos para cobrir as suas despesas, evitando que, em um futuro próximo, esse novo aparelho viesse a ter o mesmo destino dos seus “irmãos siameses”? Destino esse que, no caso, chegou mais rápido do que se imaginava: o ano passado os jornais do Recife noticiaram que o Dona Lindu também já sofria (e continua a sofrer) do mesmo descaso observado nas demais obras públicas do município: banheiros e pisos quebrados, iluminação precária, ar-condicionado sem manutenções, áreas de lazer degradada.
Na raiz dessas “restaurações” que não cessam de acontecer, encontramos o princípio que desde sempre orienta o modo como se administra e se planeja a coisa pública no Brasil: uma coisa é construir (na verdade, que gestor resiste ao canto da sereia de uma obra de alvenaria, particularmente, no caso do Dona Lindu, se ela encerra a grife Oscar Niemeyer?); outra bem distinta é, depois de construída, mantê-la em condições de uso. Se o gestor constata que não há dotação orçamentária para a sua manutenção, o problema é jogado nas mãos do próximo alcaide. Como a primeira ação (construir) depende da segunda para a sua continuidade e uso (manutenção), o gestor público tem consciência que, ao fim e ao cabo, não existindo verbas para a sua preservação, o que ele entrega à sociedade é uma obra que, em pouquíssimos anos, será apenas mais uma ruína na paisagem urbana da sua cidade.
Sim, “manutenção”, palavrinha mágica que nunca integrou o dicionário da administração pública brasileira, e que, por sua vez, é prima-irmã de outra palavra esquecida: “planejamento”. Afinal, o que é governar? Dentro da lógica brasileira é, se possível, construir obras, muitas obras de alvenaria (de preferência que ela custe o dobro ou o triplo do orçamento inicial). Não podendo construí-las, vale deixar o descaso tomar conta das que já existem; em futuro próximo, algum prefeito irá restaurá-las. Uma vez restauradas, serão jogadas novamente na vala comum do descaso. Como resultado desse descaso, as obras entram em decomposição e voltam novamente à UTI da restauração. Nesse eterno retorno, temos a imagem substantiva da administração pública brasileira: o “Uróboro”, a cobra que morde o próprio rabo.
(Divago: penso que quando um governante entrega obras degradas para o seu sucessor, ele, na verdade, está a lhe entregar um presente. Esse presente encerra implicitamente a seguinte mensagem: caso você não tenha nenhuma ideia do que fazer em sua gestão, restaure as ruínas que eu e as gestões anteriores deixamos. Afinal, ruínas não faltam na cidade, no Estado e no País).
Apesar de louváveis as manifestações de apoio à reabertura do Teatro do Parque (o que significa dizer que a população ainda não está completamente inerte aos desmandos dos nossos governantes), desconfio que depois que ele for restaurado (olha o meu otimismo!), teremos que nos preparar para em uma ou duas décadas estarmos novamente na Rua do Hospício protestando por uma nova restauração daquela casa de espetáculo. Mas antes que isso aconteça, vamos começar a esquentar os tambores, o fôlego e a disposição para as manifestações de defesa do Dona Lindu: pelo andar da carruagem, será a próxima obra a ser fechada para restauração.
Vivemos, assim, o ciclo do eterno retorno e, como tal, somos testemunhantes de restaurações que são apenas uma farsa; farsa que, infelizmente, se promove com o dinheiro dos nossos impostos; farsa que se desdobra em cinismo, particularmente quando assistimos os que, no passado, gerenciaram essas casas de cultura, agora indignados com o atual estado das coisas.
*Professor Associado 1, coeditor da revista Investigações, do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), tem trabalhos em periódicos do Brasil e do exterior (a exemplo da Revista USP, Ciência & Trópico, Luso-Brazilian Review, Estudos Portugueses, Cultura Vozes, Remate de Males e Nabuco) e dezenas de ensaios publicados em livros. É autor de Luiz Marinho: o sábado que não entardece (FCCR, 2004), Adultérios, biombos e demônios (PPGL, 2009) e Orley Mesquita: prosa e verso (CEPE, 2012). Colaborou com os volumes 3, 4 e 5 da BIBLOS: Enciclopédia VERBO das literaturas de língua portuguesa (Coimbra, 1999-2004) e é coautor dos livros O caminho se faz caminhando: 30 anos do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE (Ed. UFPE, 2006) e Hermilo Borba Filho e a dramaturgia (FCCR, 2010). É membro do Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, da Universidade de Coimbra (Portugal).