Indígenas protestam contra o genocídio sofrido pelos povos indígenas durante ATL 2018. Crédito da foto: Mobilização Nacional Indígena (MNI)
O GGN nos traz uma matéria intensa ,por R Santana, em que o Brasil fará sua foto verdadeira
diante do mundo e para sua história, esperamos que o BRASIL MEREÇA SER O BRASIL.P VASCONCELOS
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Por RENATO SANTANA jornalggn@gmail.com
A jurista Rosane Lacerda explica como a tese do marco temporal compõe uma história de violações relacionada com a tutela militar
Na tarde desta quarta-feira (30) o Supremo Tribunal Federal (STF) retoma o julgamento do marco temporal, no âmbito do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que teve sua repercussão geral reconhecida em 2019. O ministro André Mendonça, que havia pedido vista no último dia 7 de junho, abre a sessão com a leitura do voto.
Mais uma vez no Plenário da Corte Suprema, a tese restritiva do marco temporal é mais antiga e se relaciona em sua história com a tutela e a doutrina de segurança nacional da Ditadura Militar (1964-1985). O jornal GGN investigou essas relações.
Sabendo a importância das aparências, os militares não só mantiveram como também inovaram, em termos de reconhecimento constitucional, os direitos territoriais indígenas. Apesar das exceções abertas pelo Estatuto do Índio de 1973, seria complicado, mesmo naquele contexto histórico, a violação desses direitos ocorrer sem no mínimo se lançar mão de subterfúgios jurídicos que dessem aparência de legalidade a certos atos contrários à lei.
A análise é da jurista e doutora em Direito, Estado e Constituição pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (UnB), Rosane Lacerda. Pesquisadora, escritora e durante décadas assessora jurídica dos povos indígenas pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ela escreveu um livro clássico na bibliografia indigenista: Os Povos Indígenas e a Constituinte (1987-1988), publicado em 2009.
Tal aparência de legalidade visava esconder a dimensão abusiva desse poder tutelar sobre os indígenas que “se aprofundou imensamente, como justificativa para a adoção de práticas autoritárias, que operavam desde o âmbito interno das aldeias, até o nível do relacionamento indígena com o plano exterior”, afirma Rosane em entrevista ao Infoamazonia.
Casos como os de casos Mário Juruna e da União das Nações Indígenas (Unind), a Convenção 107 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Constituição de 1967 são passados a limpo e analisados pela jurista, que nunca deixou de se considerar indigenista por acompanhar estes povos desde a graduação em Direito, sendo hoje uma referência nas discussões sobre o Novo Constitucionalismo Latino Americano.
Para Rosane, é ainda presente entre as Forças Armadas e seus aliados anti-indígenas na sociedade civil o discurso utilizado pela caserna como o da preocupação com a unidade territorial e nacional do país, e dos supostos riscos que os povos indígenas poderiam trazer para essa integridade.
“Recorrem sempre à Batalha dos Guararapes em Pernambuco, contra os Holandeses, como uma espécie de mito fundador da ideia de Brasil enquanto nação miscigenada, onde todos estaríamos unidos num mesmo ideal, sem distinção, não havendo, portanto, que se falar em direitos específicos para indígenas ou para negros e quilombolas”, diz.
Rosane Lacerda é também autora do livro Diferença não é Incapacidade. Na obra, a indigenista trata da gênese e trajetória histórica da concepção da incapacidade indígena e sua insustentabilidade nos marcos do protagonismo dos povos indígenas e do texto constitucional de 1988.
Leia a entrevista na íntegra:
Durante a Ditadura Militar quais leis, normas, estatutos estavam em vigor no que tange os povos indígenas, suas terras?
Durante o tempo da Ditadura Militar-Empresarial de 64, a vida dos povos indígenas no Brasil foi marcada por algumas normas anteriores, como o Código Civil de 1916 e a Convenção 107 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e por outras produzidas pelo próprio regime, como a Constituição de 1967, a Emenda Constitucional (EC) 01 de 1969, e a Lei 6.001, de 1973, o chamado Estatuto do Índio.
Em muitos e importantes aspectos a legislação daquela época era muito diferente da que temos hoje. Para começar, no Código Civil, que durou 86 anos, o status jurídico dos indígenas era o de incapacidade civil relativa, que só deveria cessar quando estivessem integrados à civilização moderna. Por conta dessa incapacidade, deveriam depender da assistência de um tutor a ser escolhido pelo Estado – inicialmente o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), o que na prática os colocava na posição de sujeitos sem vontade própria.
Essa suposta incapacidade ganhou fundamento constitucional na Carta de 1934, foi repetida na de 1946 – que era a vigente quando do golpe de 64 –, e mantida pelos militares na Constituição de 1967 e na Emenda 01 de 69. Quando falo em fundamento constitucional da incapacidade, me refiro ao fato de nenhum desses textos (1934, 1946, 1967 e Emenda de 69) referir-se aos indígenas como identidades distintas a serem respeitadas. Na visão da época eram culturas inferiores e transitórias, a serem submetidas a um processo de incorporação à sociedade brasileira ou à chamada “comunhão nacional”. Essa postura, que ficou conhecida como “integracionismo”, virou compromisso internacional em 1966, ainda durante a ditadura militar, quando o país adotou a Convenção 107 da OIT sobre “proteção e integração das populações indígenas e outras populações tribais e semitribais de países independentes”. Ali, toda a ideia de proteção estava voltada não ao respeito à diferença, mas à garantia do tempo necessário para o processo de integração. E a integração deveria ser a base de todas as políticas a serem adotadas pelos estados em relação aos indígenas nos âmbitos da saúde, da educação, das relações trabalhistas etc.
Que mudanças os militares no poder realizaram nesse âmbito da legislação indigenista?
Em 1967, os militares já no poder, e ano seguinte ao início da vigência da Convenção da OIT, foi criada a Fundação Nacional do Índio (Funai), que passou a substituir o SPI no papel de tutora legal dos indígenas. Seis anos depois, em pleno período dos “anos de chumbo” da ditadura de 64, entrou em vigor a Lei 6.001, de 1973, o chamado “Estatuto do Índio”, com a orientação central de garantir a proteção tutelar e a integração dos indígenas à sociedade brasileira. O regime tutelar-integracionista perdurou por todo o período militar e só cessou formalmente com a Constituição Federal de 1988, que marcou a redemocratização do país.
Quanto aos direitos territoriais, num aparente paradoxo, os textos vigentes ao tempo da ditadura militar não só acolheram o reconhecimento constitucional da posse territorial indígena, que já era tradição desde 1934, como também reforçaram esse entendimento ao reconhecer também o usufruto exclusivo indígena sobre os recursos naturais dessas terras. Mais ainda, a Emenda Constitucional 01 de 1969 chegou até a declarar nulos e sem efeitos jurídicos os atos que interferissem no domínio, na posse ou na ocupação das “terras habitadas pelos silvícolas”.
O que ocorria é que tanto pelo histórico do constitucionalismo no Brasil e na América Latina, quanto pelo próprio fato da ditadura instalada, as Cartas constitucionais vigentes à época não eram dotadas de força jurídica suficiente para se impor sobre normas de status jurídico inferior. E estas frequentemente abriam exceções às regras da posse permanente e do usufruto exclusivo indígena.
Durante o período do regime militar de 64, as principais exceções aos direitos territoriais reconhecidos constitucionalmente foram as produzidas pelo próprio Estatuto do Índio de 1973. Ele permitia ao Presidente da República emitir decretos de intervenção para remover os indígenas de suas terras a fim de realizar obras públicas ou de exploração mineral, tudo em nome do critério segurança e desenvolvimento nacionais. Foi assim surgiram as rodovias Transamazônica e Perimetral Norte, a Hidrelétrica de Balbina, e tantas outras que custaram a vida e a integridade territorial de muitos povos indígenas naquele período.
Importante observar que para operacionalizar estas “exceções legais” foi fundamental toda a construção normativa tutelar-integracionista que incidiu sobre os povos indígenas ao longo da ditadura de 1964. A ideia dos indígenas como incapazes a serem submetidos à vontade de um estado tutor e integracionista, foi um recurso não só normativo mas também ideológico, que facilitou e procurou dar legitimidade jurídica à sujeição indígena ao poder militar e ao avanço e consolidação da expansão do capitalismo agrário e extrativista sobre aqueles territórios.
Sobre a tutela, como o mecanismo se apresentava na lei e de que forma ela serviu aos militares para controlar os indígenas?
Como afirmei no início, por 86 anos, desde o Código Civil de 1916, os indígenas foram considerados relativamente incapazes, a serem protegidos e terem as suas vidas dirigidas no caminho da integração por um tutor, que de início foi o SPI e depois a Funai. Nos estritos termos do Código essa proteção tutelar significava apenas uma forma de assistência jurídica para os indígenas praticarem atos, sem correrem o risco de serem lesados em seus direitos e interesses na esfera civil, sobretudo patrimonial. Contudo, a essa assistência jurídica foi marcada desde sempre por abusos e ilegalidades, sendo os indígenas tratados como absolutamente incapazes, mesma condição que à época abrigava os menores de 16 anos, os surdo-mudos que não pudessem exprimir suas vontades, os “loucos de todo o gênero” e os declarados ausentes.
Se enquanto prática a tutela foi abusiva e ilegal, o seu fundamento, ou seja, a ideia da incapacidade indígena, foi utilizada ideológica e ilegalmente para estender os abusos indevidamente a outras esferas jurídicas. Assim, essa suposta incapacidade serviu de pretexto, por exemplo, para se considerar os indígenas (já que civilmente incapazes) como inaptos para a vida política, ou seja, como não tendo direito ao alistamento eleitoral nem ao voto. Sob o mesmo fundamento passaram a ser vistos também como “inimputáveis”, ou seja, penalmente irresponsáveis, podendo, para o horror e a censura da população não indígena, cometer quaisquer delitos sem serem por isso responsabilizados. Até mesmo nas relações contratuais trabalhistas se empregava o argumento da incapacidade, alegando-se que, por serem considerados legalmente como menores de idade, os indígenas não tinham direito a contrato formal de trabalho nem aos direitos inerentes. Todas essas interpretações sobre os efeitos da tutela, embora extremamente fantasiosas e indevidas, colocaram os indígenas numa situação de grande isolamento em relação ao restante da vida do país em termos políticos, sociais, de luta por direitos etc.
Ao longo da Ditadura Militar, a dimensão abusiva do poder tutelar sobre os indígenas se aprofundou imensamente, como justificativa para a adoção de práticas autoritárias, que operavam desde o âmbito interno das aldeias, até o nível do relacionamento indígena com o plano exterior.
Herdeira da tradição do militarismo positivista desde os tempos da criação do antigo SPI pelo famoso Marechal Rondon em 1910, a Funai tornou-se ao tempo do regime de 64, e mais ainda durante as décadas de 70 e 80, um ambiente altamente militarizado. Figuras denominadas “generais”, “coronéis”, “delegados” e “capitães” povoavam as estruturas de poder do órgão, exercendo voz de comando inclusive no interior das comunidades.
Ainda na década de 1970 e início dos anos 80, quando das primeiras “assembleias de chefes indígenas”, muitos desses encontros foram declarados expressamente como proibidos, enquanto outros foram dispersados à força com o uso de repressão policial. Muitos líderes indígenas de então foram simplesmente proibidos de deixarem suas aldeias, a fim de não poderem participar de tais eventos em outras terras indígenas. Ao mesmo tempo, eram proibidos de receberem os seus “parentes” de fora para a realização de eventos similares, destinados à socialização e troca de experiências sobre os problemas centrais vividos pelos povos, principalmente a questão dos conflitos e direitos territoriais.
Dois eventos ocorridos no final dos anos 70 e início dos 80 me parecem os mais emblemáticos do uso instrumental do instituto jurídico da tutela como mecanismo de repressão e tentativa de controle dos indígenas pelos militares: os casos Mário Juruna e União das Nações Indígenas (Unind).
No primeiro, o então presidente da Funai, coronel Nobre da Veiga, tentou proibir a viagem do cacique Xavante Mário Juruna, ao exterior, onde participaria do Tribunal Internacional Bertrand Russel, denunciando as violências sofridas pelos povos indígenas no Brasil. Para o general, na qualidade de tutor lhe cabia desautorizar a emissão do passaporte, como medida de proteção ao Xavante, a fim de que não fosse objeto de exploração política no estrangeiro. O caso levou a um pedido de Habeas Corpus, por um grupo de advogados aliados da causa indígena, junto ao Tribunal Federal de Recursos (TFR). O Tribunal, por fim, ordenou que a viagem fosse autorizada, por considerar os indígenas como beneficiários da Declaração Universal dos Direitos Humanos tanto quanto quaisquer outros e, portanto, livres para viajar sempre que o desejassem.
E se na visão militar a tutela poderia ser utilizada para impedir aos indígenas viajarem ao exterior para denunciar o estado nas instâncias internacionais, também poderia ser utilizada para impedi-los de criarem entidades associativas próprias que questionassem a política indigenista em vigor. Foi o caso, por exemplo, da tentativa de impedimento da criação da Unind, por um grupo de jovens estudantes em Brasília, tentativa essa que envolveu os esforços até mesmo do então ministro-chefe do Gabinete Civil da Presidência da República, o General Golbery do Couto e Silva.
Tivemos os casos das certidões negativas como manobras administrativas dos militares para driblar ou não garantir os direitos indígenas. Quais outras você pode nos citar e quais as consequências delas na prática?
Como disse antes, num aparente paradoxo os militares não só mantiveram como também inovaram em termos de reconhecimento constitucional dos direitos territoriais indígenas. Apesar das exceções abertas pelo Estatuto do Índio de 1973, seria complicado, mesmo naquele contexto histórico, a violação desses direitos sem no mínimo se lançar mão de subterfúgios jurídicos que dessem aparência de legalidade a certos atos.
Assim é que se fez uso da prática, pelo próprio poder público, da expedição de “certidões negativas” de presença indígena em determinados territórios onde incidiam projetos de interesse de grupos econômicos. Se a Constituição e o Estatuto do Índio reconheciam aos indígenas o direito de posse de suas terras, nada mais conveniente do que se emitir, sem qualquer estudo prévio criterioso, certidões de que naquela terra em específico não havia presença indígena. Cheguei a acompanhar um caso desses na década de 80, junto à área de abrangência da SUDENE, quando recém entrada em vigor a Constituição de 1988. Ali, uma empresa do ramo leiteiro pretendia receber recursos do BNDES para o financiamento de seu empreendimento numa terra onde, sem qualquer estudo, a presença indígena constava em certidão como “negativa”. Como assessora jurídica que acompanhava justamente a situação daquele povo indígena, conseguimos intervir no processo, contestando administrativamente a certidão. Entretanto, durante o regime militar de 64 tais certidões foram utilizadas em larga escala principalmente ao longo da expansão econômica sobre os territórios indígenas da região amazônica.
Outro subterfúgio também utilizado foi o da prorrogação dos contratos de arrendamento de terras indígenas. Praticado corriqueiramente pelo antigo SPI e pelos Diretores de Aldeamentos no século XIX, sob a alegação de fonte de recursos para investimentos econômicos nas aldeias, o arrendamento foi expressamente proibido no Estatuto do Índio de 1973. Mas, como dizem que “o diabo mora nos detalhes”, o Estatuto, lá no finalzinho, nas disposições gerais, previu também a sua continuação de forma excepcional, por “prazo razoável”. Foi o que bastou para que continuasse décadas depois, gerando situações de invasão territorial cada vez mais complexas.
Os militares aplicaram uma doutrina na Amazônia que envolvia a ocupação de áreas que consideravam “vazias” e estratégicas. Alçaram os povos indígenas a inimigos da soberania nacional, a serem integrados. Tivemos a história dos militares se negarem a regularizar terras em áreas de fronteira. Na Constituinte, essas ideias serviram de argumento contra os artigos 231 e 232?
No Brasil os militares sempre viram a questão indígena, sobretudo na região amazônica e na faixa de fronteira, com especial interesse. O discurso utilizado pela caserna é sempre o da preocupação com a unidade territorial e nacional do país, e dos supostos riscos que os povos indígenas – com sua diversidade cultural e linguística e com suas terras demarcadas –, poderiam trazer para essa integridade. Então recorrem sempre à Batalha dos Guararapes em Pernambuco, contra os Holandeses, como uma espécie de mito fundador da ideia de Brasil enquanto nação miscigenada, onde todos estaríamos unidos num mesmo ideal, sem distinção, não havendo, portanto, que se falar em direitos específicos para indígenas ou para negros e quilombolas.
Esse discurso também foi reproduzido e utilizado pelos militares ao tempo da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88. Ele apareceu na voz de alguns Constituintes do chamado Centrão, nos discursos de oficiais da reserva ligados ao Clube Militar, e na fala de alguns oficiais da ativa, sobretudo durante os ataques sofridos pelo Cimi durante a veiculação, pelo jornal Estadão, de falsas denúncias que ensejaram, em pleno trabalho da Constituinte, a criação de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre uma suposta tentativa da entidade em utilizar a defesa dos direitos indígenas na Constituinte, para internacionalizar a Amazônia e destruir a integridade do território nacional brasileiro.
Então, sim, a construção dos dispositivos sobre os povos indígenas na Constituinte sempre gerou ataques ferrenhos por parte de setores do oficialato militar, tanto da ativa quanto da reserva. E pela sua postura histórica em relação à questão indígena ao longo do tempo, aliada à não ocorrência de uma Justiça de Transição, não é de se estranhar que sua postura tenha sido reativa.
A tese do marco temporal é resquício da doutrina de segurança nacional da Ditadura Militar em relação aos povos indígenas?
Embora se fale sobre a tese jurídica do chamado “Marco Temporal” como algo recente, que surge a partir da demanda em curso no Supremo Tribunal Federal envolvendo a terra indígena Xokleng, ela tem origens um pouco mais recuadas. Na história das Constituições republicanas, a de 1934 foi a que pela primeira vez afirmou o dever de se respeitar aos indígenas (então chamados de “silvícolas”) a posse das terras nas quais estivessem “permanentemente localizados”. Em sua análise sobre o significado deste e dos posteriores textos constitucionais que trataram do tema mais ou menos de modo repetido, o antigo jurista Pontes de Miranda firmou a tese de que, conforme a Constituição, prevalecem sempre os direitos de posse dos indígenas quando confrontados com direitos de terceiros, mesmo, que estes estivessem amparados em documentos. Contudo, tal direito indígena só teria uma única condição, a de que os indígenas estivessem na posse daquelas terras no momento da promulgação da Constituição de 1934.
Considerando o histórico da ocupação dos territórios indígenas pelos colonizadores, as perseguições, guerras e massacres sistemáticos, que ocorreram desde sempre, não seria de se esperar que a sua vinculação com aquelas terras se traduzisse em estarem “sempre no mesmo local”, principalmente no dia da promulgação da Constituição de 1934. Muitos povos indígenas chegaram à Constituinte de 1987-88 reclamando a demarcação de seus territórios inclusive como forma de os receberem de volta, já que se encontravam em mãos de invasores que haviam sido beneficiados por políticas que privilegiavam interesses de determinados grupos econômicos, em detrimento da relação ancestral indígena com aqueles territórios.
Então a tese jurídica, historicamente falando, tem essa origem nos estudos de Pontes de Miranda, que foram posteriormente resgatados por Nelson Jobim ainda enquanto Ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso. Trata-se de um argumento ao qual os militares não se opõem, muito pelo contrário. Mas não foi produzido pela Ditadura Militar de 64, é anterior a ela.
No caso Xokleng, a construção da barragem no rio Itajaí, iniciada durante a Ditadura Militar, ignorou a existência dos indígenas e alagou grande parte de seu território. Essa foi uma prática comum na ditadura. Por que ainda seguimos a ver exemplos do tipo ocorrer pós-1988?
Como já havia mencionado antes, durante a Ditadura Militar de 64, principalmente nos anos 70 e 80, o principal “guia” jurídico para as práticas de invasão legalizada dos territórios indígenas foi o Estatuto do Índio, de 1973. Antes disso havia a legislação da época do SPI, mas o “Estatuto” deu uma roupagem mais moderna para a antiga prática de expulsar os índios de suas terras e incorporá-los aos interesses do capital. Bastava que o governante de plantão lançasse mão de argumentos como “segurança nacional”, “desenvolvimento nacional”, ou as duas coisas juntas, para que se pudesse, por decreto determinar a retirada da população e realizar o projeto, que poderia ser implantação de obras de infraestrutura, ou exploração de riquezas do subsolo. Assim, muitas represas de Usinas Hidrelétricas (UHEs) foram construídas em terras indígenas, sem que as comunidades fossem sequer ouvidas. Afinal, eram considerados incapazes, o projeto era definido pelo tutor, e a ideia de consulta só viria com a Constituição de 88 e, depois, com a Convenção 169 da OIT.
Pois bem, apesar dos avanços normativos continuamos a ver casos de territórios indígenas sofrendo os impactos de grandes obras, a exemplo das UHEs de Belo Monte, Jirau e Santo Antônio etc. E por quê? Em primeiro lugar, porque a Constituição de 1988, ao fixar como regra que as terras indígenas sejam intocáveis, abriu uma exceção para as obras ligadas à produção de energia hidrelétrica e à pesquisa e exploração mineral. A diferença aqui em relação ao Estatuto de 1973 é que a Constituição condiciona esse tipo de exploração à autorização do Congresso Nacional e à escuta das comunidades indígenas afetadas. Em segundo lugar, muitas vezes nem essas exigências constitucionais são levadas em consideração. Basta que as obras das barragens e a formação dos lagos sejam projetadas para “fora” das terras indígenas reconhecidas formalmente como tais, isto é, demarcadas. Então, mesmo vindo a causar impactos ambientais e sociais, vigora o discurso de que não incidem nas terras indígenas, e que os impactos que causam são “apenas” indiretos, como se fosse pouco. Os casos recentes do avanço das UHEs sobre terras indígenas é um alerta de que, para os interesses do capital transnacional, e do modelo de “desenvolvimento” predominante, não existem barreiras jurídicas inexpugnáveis. Apesar disso, para os povos indígenas e os demais segmentos excluídos da sociedade, as conquistas jurídicas seguem sendo um escudo protetor do qual não se pode abrir mão.
Em que medida a tese do marco temporal se opõe à Constituição Cidadã de 1988, já que esta teve intensa participação de povos indígenas que lutavam por suas terras?
Como vimos antes, a tese do marco temporal significa que os direitos territoriais indígenas amparados constitucionalmente só são juridicamente exigíveis caso haja comprovação da presença indígena sobre aquela terra, vivendo conforme seus usos, costumes e tradições, na data da promulgação da Constituição; no caso atual, 5 de outubro de 1988. Esta data seria, portanto, o marco temporal que delimitaria a constitucionalidade da relação indígena com a terra. Fora disso, esta não poderia ser caracterizada como indígena.
Ocorre que durante os trabalhos da Constituinte de 1987-88, a tese vencedora entre as diversas em disputa naquele momento, foi a de que, por serem anteriores à formação do estado brasileiro, os indígenas seriam portadores de direitos diferenciados quanto às suas terras: os chamados direitos, “originários”, de posse e usufruto. Isso significa que tais direitos não foram concedidos pelo Estado, nem adquiridos mediante compra, nem arrendamento, locação ou qualquer outra forma de aquisição de direitos juridicamente válida para a sociedade em geral. A ideia dos direitos territoriais indígenas como originários, foi introduzida no debate constituinte a partir de uma antiga instituição jurídica vinda dos tempos da colônia e resgatada no início do século XIX pelo jurista João Mendes Júnior, a tese do “indigenato”. Fruto da firme e constante presença de delegações indígenas vindas de todas as regiões do país no espaço da Constituinte, o indigenato venceu as disputas então travadas com setores contrários aos direitos indígenas, especialmente do Centrão, marcando uma forma diferenciada de se compreender aqueles direitos. Na contramão dessa conquista, a tese do marco temporal procura derrotar, perante o STF, algo que o próprio poder constituinte já havia compreendido e declarado como válido.
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