O inventário apodrecido
. . .
Artur andava às pressas com uma única questão, que estava a lhe tirar o sono e a paciência: a leitura do testamento de seu avô, um senhor que não sofria de nenhum mal, a não ser o de pensar. Ele e mais dois irmãos foram convocados por um tabelião, para que ouvissem as determinações daquele velho tranquilo sobre a divisão de seus bens. Artur entrava novamente naquela casa, cujas lembranças não passavam de 12 horas, pois passou a morar e cuidar daquele que influenciou o seu pai a dar-lhe o nome que hoje carregava. Foi o único entre os netos e tios que se prontificou a cuidar de seu avô. Assumiu todas as tarefas, incluindo aquelas mais difíceis, quando o “vô Artur” resolvia explorar o andar de cima do sobrado. Subir as escadas com um velho lúcido e pensativo deixava-o muito cansado e irritado, pois percebia que nada acontecia com aquele homem de quase cem anos.
Essa tarefa, no entanto, parecia ser ainda mais difícil, pois o amor que Artur sentia por aquele homem era maior que os seus 39 anos e ele o sentia exatamente assim, como algo que ultrapassava a si mesmo e que ele não conseguia explicar. Era-lhe incômodo o sentimento de despedida, não pelo fato de senti-lo, mas por demonstrá-lo na frente de outros, cuja dedicação foi nenhuma e totalmente nula. Foi assim que Artur entrou na sala. Olhou para todos os presentes e percebeu que a geração posterior daquele homem que lhe preocupava nas escadas era masculina. Seu pai, seus dois irmãos, seus dois tios e seus sete primos. As mulheres presentes não carregavam o seu sangue. Faltava apenas a sua presença e, portanto, a tarefa burocrática de um tabelião foi iniciada.
Aquelas palavras proferidas naquela situação tinham um peso que modificava à medida que saiam da boca daquele homem. Começavam pesadas como a esteira de um trator e, no percurso até o ouvido de Artur, perdiam o peso. Ao entrarem em sua cabeça passavam a flutuar num espaço escuro e produziam ecos. Eram ecos no escuro, que faziam com que Artur se preocupasse mais com a sensação que elas lhe provocavam, do que com o significado das palavras que formavam frases, períodos e parágrafos. Ele só passou a se interessar realmente, depois que os olhares daqueles homens todos lhes foram dirigidos. Pensou: “é de mim que se ocupam”. Muito mais que isso. Eram acusações silenciosas que havia naqueles olhares. O que havia sido distribuído para os parentes daquele senhor significavam muito para todos, todavia, a parte que cabia ao neto mais novo fez-lhes crescer os olhos.
O vô Artur dividiu os dois únicos bens imóveis que possuía. Uma casa localizada numa região de campina, com todos os bens que havia dentro dela, e a casa onde passou os últimos quarenta anos de sua vida, que também havia recebido de herança de seu pai. A casa de campo foi repartida de maneira igualitária. Todos ficaram com a missão de zelar por cada metro quadrado daquele enorme terreno e haveriam de observar as divisões feitas em testamento por cada copo e talher, caso resolvessem vender aquele patrimônio. A casa da cidade, com tudo o que havia dentro, foi dada a Artur. Ele só se deu conta disso depois daqueles olhares. A relação completa dos pertences que havia na casa da cidade demorou uma hora e meia para ser lida. Ao final, havia mais uma observação e determinação testamentária: a conta bancária com um valor que não chegava a ser milionário, mas que daria tranquilidade a qualquer um para o resto de sua vida, além de um cofre e seu conteúdo, que estava no mesmo banco onde seu avô mantinha essa conta.
Todos assinaram aquela espécie de ata fúnebre, dando ciência de seu conteúdo e, ao mesmo tempo, dizendo que concordavam com o que havia sido determinado. Artur pensou que nem havia necessidade daquele ato formal, pois não havia como contestar alguma linha do que foi lido naquela sala. Todos os ecos continuavam em sua mente. Saiu o tabelião e os homens da família reuniram-se em seguida. As mulheres não participaram daquela conversa por não terem o sangue daquele velho correndo em suas veias. Na cabeça de Artur, o raciocínio se dava de maneira contrária àquela determinação. As mulheres tinham de estar ali, pensava, uma vez que seriam elas que cuidariam de cada centímetro daquela casa no campo, como já vinham a fazer. Eram elas que dedicariam o carinho que já vinham dedicando há anos para cada prato, copo e talher daquele espaço. Não teve jeito. Seria uma conversa entre os homens.
Em nenhum daqueles portadores de pênis havia a coragem de questionar o que havia sido lido por um tabelião, apesar de seus olhos denunciarem a vontade disso. Aqueles homens deram início à conversa perguntando se havia interesse na venda da casa de campo por algum dos que estavam ali presentes. A pergunta fora feita pelo mais velho, tio de Artur. Apenas o pai de Artur disse que não se importava caso resolvessem vender, mas isso não havia sido uma resposta. O próprio tio mais velho disse que jamais venderia a casa e, tendo dito isso, selou o destino de todos, pois a casa de campo só poderia ser negociada com a anuência de todos os herdeiros. Ao final de tudo, viraram-se para Artur e perguntaram se ele venderia a casa, uma vez que, isso sim, poderia ser decidido por apenas uma pessoa. A resposta foi não.
Após a conversa de timbre masculino, a casa e a mente de Artur deixaram de ecoar as vozes de todos, bem como deixaram de ser vistas as imagens daquelas pessoas. Ele ainda conseguiu separar em categorias todos os olhares e apertos de mão. As mãos também demonstravam uma diferença enorme de todos os que lhe dirigiram o olhar. As mãos diziam adeus. Os olhares foram divididos entre pena, ódio, inveja e ternura. Este último sentimento veio das mulheres. Todas elas olharam para Artur e disseram: “conte comigo para o que precisar”. Talvez por ter desenvolvido uma estratégia de leitura subliminar das frases ditas por todos naquela família, Artur ouvia imediatamente o eco da mesma voz dizendo “você é o único que nos compreende nessa família; não nos abandone”. Nada ali havia sido dito com a verdadeira intenção por muitos anos e, portanto, não seria naquele momento que isso mudaria. Fechou-se a porta com o último parente.
Restaram ali, no campo de visão de Artur, uma porta fechada e as sombras dos parentes, que diminuíam na medida em que desciam os degraus. Foram-se todos. Cessaram-se os barulhos e havia uma única coisa nova na casa: uma espécie de vaso de cor cinza, onde estavam as cinzas de seu avô. Artur resolveu sentar-se em frente à lareira e olhar aquele vaso-caixão. A cor externa deveria ter algo a ver com o conteúdo, pensou. Por que não seria vermelha ou azul? Ali naquele vaso estava o que restou daquele velho amado. Artur, então, começou a ver aquele vaso crescer de tamanho e teve a mesma sensação de infinitude que experimentara nas últimas doze horas, como se algo lhe ultrapassasse. Aquilo ali não significava absolutamente nada. Aquilo ali eram apenas cinzas. O vaso, a casa, as escadas, as sombras, os ecos também não significavam coisa alguma ou não davam conta do tamanho da presença de seu avô dentro dele. Não havia algo que se fora. O que havia ali estava presente dentro dele.
Como uma forma de defesa, ele transferiu aquela sensação vulcânica para as tarefas que deveriam ser feitas e uma delas era jogar as cinzas do avô no canal que passava atrás daquela casa. Foi um pedido deixado em testamento e que ele já sabia, pois o velho Artur lhe havia dito isso inúmeras vezes. Havia um refúgio ali, no quintal da casa, para onde o seu avô costumava ir ao final da tarde, não importava a estação do ano. Era a parte do terreno que finalizava com um muro de pedras e, deste local, olhava-se o canal de água salobra. Havia um banco de madeira e uma mesa. De lá, era possível ver os fundos de outras casas e, algumas vezes, cumprimentar os vizinhos. Artur foi levado inúmeras vezes ali e isso lhe dava uma sensação de aventura, como se um velho barco viesse entregar as especiarias que havia pedido, ou ainda que ele mesmo estivesse a chegar num desses barcos.
Levantou-se e foi em direção ao vaso cinza. Colocou-o nas mãos e pensou novamente no que ele significava. Cinzas. Foi até o quintal e deixou-se invadir pela sensação do barco chegando. Deixou que fosse esse o sentimento a lhe invadir quando jogou as cinzas do avô no canal. Para que não restasse nenhum vestígio daquelas cinzas, Artur jogou também aquele vaso, que não demorou muito para desaparecer de seu olhar. Não era o seu avô que estava ali. Eram cinzas e aquilo não representava absolutamente nada a não ser o cumprimento de uma vontade. Achou toda aquela situação muito parecida com um verso de um poema chamado American Names, de Stephen Vicent Beneth, que dizia “enterrem meu coração na curva do rio”. Deixou assim, do jeito que estava e ainda viu uma folha amarela cair no canal e acompanhar as cinzas que iam navegando numa correnteza leve. Pensou “é isso?” Não respondeu e entrou novamente na casa.
Era outono e naquela parte do planeta o vento já anunciava a neve que tingiria toda a paisagem de branco nos próximos meses. Ainda havia cinco horas de luz, mas era necessário pensar em outras coisas a fazer. Artur era o dono daquela casa, de todos os móveis e utensílios que ali estavam. Em cada um deles estava uma lembrança boa que ele não queria se desfazer. Jamais faria isso e sabia que essa decisão era uma coisa que lhe acompanharia para o resto de sua existência. A maneira independente como sempre conduziu a sua vida, legou-lhe a solidão, entre outras coisas. No entanto, nenhum de seus irmãos ou até mesmo seu pai seria capaz de pedir para morar ali, junto com ele. O resto da família, então, estava longe até de um telefonema, para perguntar-lhe se precisava de ajuda. Dessa maneira, estavam dadas as circunstâncias e Artur teria que entregar-se a um tipo de caminhar sobre o mundo com surpresas que explodiam de dentro dele.
Artur teve pouco tempo de sono naquela noite. Acordou, fez seu café com torradas e saiu, pois as tarefas ainda não haviam terminado. Ele teria que ir ao banco e assinar papéis. Além disso, teria que ver o que seu avô havia lhe deixado no tal cofre, que não passava de uma caixa metálica, guardada dentro de uma pequena “fortaleza”, trancada com todas as chaves e códigos. Em suma, aquela caixa é que estava dentro de um cofre. Pois foi assim que aqueles dois homens, um dentro do outro, saíram daquela casa e caminharam em direção ao banco. Era simples. Ninguém precisava saber que ali caminhavam dois homens com o mesmo nome. Bastava que vissem apenas um e era assim que acontecia. Os vizinhos apressavam-se em apertar sua mão e acariciar seu rosto. Eles sabiam que o rapaz que caminhava naquela manhã era diferente de todo o resto da família. Eram esses vizinhos que apareciam, de vez em quando com tortas e docinhos, propondo um encontro e uns momentos de convivência que eram muito bem aceitos pelos dois.
Assim foi até a metade do caminho, quando encontrou com seu tio Guilleme, o mais velho. Cumprimentaram-se e Artur sentiu que o seu tio queria dizer-lhe algo. Sem rodeios fez-lhe a pergunta que foi prontamente respondida. “Sim, gostaria de conversar com você, caso tenha um tempo”. A curiosidade de Artur a respeito do conteúdo daquela caixa metálica era grande, mas não era tão maior que a vontade de saber o que o seu tio, que lhe dirigiu a palavra poucas vezes nesses trinta e nove anos, queria lhe falar. O tom da resposta dada por Guilleme não foi seco e, tampouco, agressivo. Havia uma consideração estranha, porém carinhosa e um pouco tristonha. Aquilo só fez com que a curiosidade fosse transferida com toda a força de uma locomotiva para essa questão. O significado do nome de seu tio é “o protetor”.
Sentaram-se num café, com mesas do lado de fora e ali falaram um pouco, como nunca haviam feito, sobre a vida. Artur descobriu um tio que não havia passado por sua vida até então. Por força do que viveu, resolveu resguardar-se e esconder aquele outro Artur que carregava em si. Foi quando ouviu do tio uma coisa que jamais esperava ouvir. “Foi você o mais injustiçado de todos nós. Você ganhou a parte apodrecida desse espólio”, disse-lhe o tio. “Nós ganhamos uma casa no campo, com tudo o que há dentro dela, e você ficou com aquela casa que não deve lhe trazer boas lembranças”. Artur calou-se, pois sabia que a interpretação do tio a tudo aquilo poderia ser “lida” de outra forma em sua mente. Não havia interesse algum em propor uma troca e, com a mesma verdade de sentimento que Guilleme, o protetor, abordou Artur, ele se despediu e falou: “Nós estaremos no mesmo lugar de sempre, caso precise de ajuda. Ah, sim, e a casa de campo também é sua. Não se acanhe em usá-la quando sentir vontade.”
Foi a primeira vez que ouviu algo assim daquela boca. Agradeceu a gentileza e viu o tio sumir pela rua. Um espólio apodrecido. Era assim que seu tio via aquela herança inventariada com os mínimos detalhes por seu avô, pai dele. No entanto, aquele encontro só serviu para que Artur visse como seu tio, e talvez os outros, enxergavam aquele acontecimento. Ele não sentiu nenhuma espécie de carinho que pudesse ter sido experimentado entre aquelas duas pessoas que eram pai e filho. Sentiu-se como se tivesse sido escolhido pela solidão de um avô que, assim como ele, não se via naquele grupo que as pessoas costumam chamar de família. A família de Artur foi, por um tempo, aquele núcleo dependente formado por pai, mãe e irmãos. Na adolescência, com 14 anos, mudou-se para a casa do avô e ali viveu desde então. Visitava a família de vez em quando, que o tratava como um hóspede cada vez que aparecia. Não houve aquela despedida sofrida, típica das famílias de sangue neolatino. Era apenas aquilo.
Caminhou até o banco e conversou com o gerente da conta de seu tio, que lhe apresentou o montante reservado a ele. Pediu-lhe que assinasse os papéis que asseguravam que aquela quantia era de sua propriedade a partir daquele momento. Ao final, disse-lhe havia o cofre, que também precisava de sua assinatura para que pudesse abri-lo. A senha lhe seria dada em seguida ao ato burocrático. Assim foi. Com um pedaço de papel na mão, Artur se dirigiu até uma espécie armário de ferro, onde várias gavetas formavam um muro com um metro e meio de altura, de parede a parede. Ao lado de cada caixa havia um teclado alfanumérico. Artur foi abandonado pelo gerente e pôde ficar a sós com seu tesouro. Digitou calmamente a sequência, guardou o papel no bolso e apertou a tecla de cor verde, que confirmaria o envio da informação. Ouviu um “click” e a gavetinha saiu uns cinco centímetros daquela parede.
Estava ali em suas mãos a tal caixa metálica que o tabelião chamou de cofre. Artur não sabia o que poderia estar ali, mas imaginava que poderia ser algo mais valioso que a dinheirama deixada por seu avô. Só não sabia o quê. Retirou a caixa e foi para uma mesa próxima, onde havia uma cadeira e ali, silenciosamente, pôde abrir a caixa. Havia dentro dela duas coisas: uma página dobrada em três partes e um maço de papel com algumas folhas dobradas. Artur retirou a primeira página dobrada e a abriu. Escrito com uma caneta bico de pena, havia o seguinte:
“Arthur, eu lhe deixo o maior tesouro que um homem pode ter. Eu lhe deixo a dúvida.”
Escapou-lhe algo por alguns segundos. Ali, naquela mesa, ele não tinha dúvida de nada. Ele tinha certeza. Naquela frase estava o seu avô. Esses segundos vieram acompanhados de uma reação orgânica. Seus olhos se encheram de uma água meio salgada, como aquela água do canal que passa atrás da casa que agora lhe pertencia. Meio doce, meio salgada. Deu um tempo para que seu corpo falasse um pouco. Há de haver respeito por isso, pensou. Esperou por alguns minutos, sozinho naquela sala sem nenhuma decoração atrativa. Passou a mão no rosto e abriu o maço com as folhas dobradas, também em três partes para que coubessem na gaveta metálica. Aquilo era uma carta, escrita há dez anos. Artur supôs que o bilhete anterior também teria sido escrito na mesma época. Com a carta aberta em sua frente, começou a ler.
“Não existe a morte quando identificamos no outro a fonte de nossas dúvidas e certezas, por mais fugazes que elas possam ser. Quando tu chegastes em minha casa, ainda muito jovem, para morar comigo, um velho viúvo e solitário, cheguei a pensar que seria melhor pagar um colégio bem longe desse país, pra que tivesses mais liberdade, mas removi esse pensamento quando me olhastes, naqueles pouco segundos, e dissestes: ‘eu vim para cuidar de ti e para aprender a viver contigo’. A primeira parte eu conseguia entender, mas não a segunda. No entanto, aceitei aquilo como um desafio e posso lhe garantir que ele foi exatamente isso. Não há como ensinar algo a uma pessoa achando que isso não seja uma estrada de mão dupla, ainda mais quando há amor entre elas. Há quinze anos tu estás em minha vida e eu estou aprendendo contigo cada segundo.
Eu não sei quanto tempo tu vais demorar para ler isso, mas tenho absoluta certeza de que não importa o período que durar, após essa escrita, porque o carinho e a consideração que sinto por ti não diminuirão um milímetro. Tu sabes que eu vivi em dois lugares apenas em toda a minha existência. Naquela casa do campo, onde meus pais me ensinaram a plantar, colher, podar, cuidar de animais e, também, me proporcionaram um bem valiosíssimo, que foram os meus estudos. Não havia universo superior ao que eu encontrava naqueles livros. Terminei meus estudos ali naquele campo distante da universidade, cujo percurso me custava boas horas de sono. Ali também me casei e morei com minha mulher e meus filhos, que logo saíram daquele espaço longínquo e vieram cuidar de suas vidas aqui nesta cidade cheia de canais.
Tudo isso tu sabes, pois eu te contei diversas vezes, mesmo sem entender o motivo de gostares tanto de ouvir a mesma história. Um ano antes de tu nasceres, eu perdi a minha companheira, o amor da minha vida. Resolvi me mudar daquele lugar, pois também meus pais já haviam partido e eu não conseguiria olhar para qualquer parede daquela casa ou escutar o mugido de uma vaca sem que a lembrança terna deles me invadisse a alma. Ali também já não estava a disposição e a alegria de vozes queridas. A impressão que eu tinha era a de que o período de convivência havia cessado e restava um único olhar sobre aquele espaço. O olhar do caseiro, que passou a cuidar dos animais, portanto já não era o meu olhar. Por isso, decidi sair. Vim assumir sozinho uma casa que nem em meu período de estudo fora utiliza por mim. Seria mais cômodo assim, já que resolvi manter, dos meus pais, algo que me era prazeroso: aquele olhar alegre deles, todas as noites, quando voltava de um dia de estudos. Certamente isso era melhor que o olhar utilitário do caseiro!
Só frequentávamos essa casa da cidade em período de férias e isso era muito curioso. As pessoas da cidade dariam tudo para passar alguns dias numa casa de campo e nós vínhamos na direção oposta. Talvez por morarmos ali, naquele mundo encantado, a novidade era ver como os habitantes se comportavam e assim foi, até que tudo mudou. De uma condição onde o convívio era uma necessidade, eu me vi absolutamente só. E aquilo não me fazia qualquer mal, com exceção do sentimento saudoso, que passou a ter contornos tristes. Bem antes de receber um diploma universitário, eu tinha como refúgio uma coisa que construiu esse meu temperamento calado e tranquilo, que eram os livros. Quando decidi que a casa da cidade seria esse refúgio, eu já estava “vacinado” contra a solidão.
Deixe-me explicar uma coisa que talvez tu já tenhas percebido ou criado explicações da tua maneira. A minha relação com os filhos que tive foi determinada por mim, pois sempre achei que eles devem aprender a viver e a ter suas “saídas” para os problemas que a vida lhes impõe. Inteligente não é o sujeito que frequenta salas com cheiro de mofo e, de vez em quando, iluminadas por uma mente brilhante. Inteligente é quem sabe sair das armadilhas que a vida nos coloca cotidianamente. Eu talvez entenda, em função disso, a maneira como eles me tratavam. O que eu não podia fazer era dizer-lhes que o carinho não está distante da palavra liberdade. Esse é um aprendizado individual. Você os viu, todos eles, incluindo o seu pai, vindo uma vez por ano em nossa casa para desejar um Feliz Natal, sem que ali houvesse qualquer sentimento de amor e solidariedade por mim ou por você. Apenas cumpriam um ritual.
Eu te vi, várias vezes, explorando um universo totalmente familiar a mim, que é a biblioteca. Deixei que assim fosse, pois essa foi a experiência mais espetacular que eu tive e seria também para ti. Quantas vezes discutimos temas que nos eram especiais, lembras? Pois assim aprendemos a ser, a escutar nossas vozes, a compartilhar de momentos sempre novos, como a ida para o fundo do quintal, de onde se pode ver o canal e também as folhas que caem naquela água esverdeada e serem levadas por uma correnteza que só é visível em função desses objetos que ali caem. Os teus olhos me mostravam o prazer imenso que sentias quando estávamos naquele lugar. Aquele foi um refúgio criado por mim e por ti adotado, como uma poesia que se lê e se sente que ela ocupou um imenso espaço dentro de nós.
Não gostaria que ficasses tão triste com a minha partida. Tu sabes que isso não acontece tal qual se mostra quando passamos a existir dentro de alguém. Se quiseres, leva contigo essa carta. Caso não queiras, coloque-a suavemente sobre a brasa da lareira. A caixa metálica de onde tiraste isso é tua. Podes guardar o que quiseres, pois é para isso que servem os cofres em bancos. Eu resolvi guardar o que considerava precioso, que é esse diálogo constante contigo, que não acabará com a minha morte e nem quando saíres desta sala feia sem qualquer atrativo. Há algo mais, que transborda a existência e nunca mais sai de nossas mentes. As caixas metálicas só servem para guardá-las até o momento de serem conhecidas. Depois disso, já não lhes cabe o conteúdo.
Gostaria de dizer, outra vez, o quanto foste importante para mim, pois soubeste respeitar os meus momentos de solidão, principalmente quando estavas em casa. Não há algo mais importante que isso para mim. Eu vou carregar comigo, para onde quer que eu vá, as melhores lembranças desse desafio, que foi o de tentar te ensinar a viver, como tu querias, tendo eu mesmo aprendido imensamente. É uma via de mão dupla, lembras? Alguma certeza talvez pudéssemos ter, mas o que nos movia era, sobretudo, a dúvida de não sabermos qual seria o resultado desse viver que nos dispusemos a cumprir. Tivemos o que não seria possível se não tivéssemos nos lançado nessa empreitada deliciosa. Há de se ter paciência para duvidar e me parece que isso nós tivemos de sobra.
Bem, eu não quero me alongar muito. Não sei exatamente em que ordem tu farás as coisas que te pedi com relação às cinzas e ao banco. Talvez preferisses vir nesse lugar primeiro e, depois, realizar aquela tarefa. Caso seja assim, quero que saibas que ali estão apenas as cinzas de alguém. Eu não estou ali. Eu sei que os rituais têm significados distintos para cada um. Porém, digo-te isso apenas para que não coloques a imensidão e a infinitude de nossa história num punhado de cinzas. Quero, também, que reflitas quando te disserem que és um injustiçado em função do pouco que te deixei. Um de meus filhos chegará para ti e dirá que és possuidor de um espólio apodrecido. A única coisa que peço a ti é que duvides disso.
Com o carinho e o amor de teu
Vô Artur.”
Artur leu cada palavra daquela declaração de amor como se mastigasse cada palavra e percebeu o quanto havia absorvido aquele jeito de pensar e agir. Era tudo uma continuação. Ficou um pouco ali, com os papéis dobrados nas mãos. Não houve releitura. Talvez ele fizesse isso em sua casa, olhando para a lareira ou lá no fundo do quintal. Deve ter demorado uns trinta minutos até tomar a decisão de deixar o local. Colocou os papéis no bolso do blazer, retornou a caixa metálica para o seu lugar e saiu. Na saída, cumprimentou o gerente, que passaria a informar-lhe a respeito de possíveis transações financeiras que pudessem lhe ser favoráveis. Essa era a única coisa que Artur não pensava naquele momento. Voltou para casa um pouco mais sério e sem aquela sensação de flutuar. Tudo e nada havia sido dito.
Antes de entrar em casa percebeu que os vizinhos também se adaptaram a ele, pois sentiam aquela atmosfera e não saíam de onde estavam para dizer-lhe algo mais de perto. Faziam apenas aquele movimento com a cabeça, uma espécie de cumprimento, como quem diz “estou cumprindo a missão de cumprimentá-lo, pois assim manda a etiqueta”. As calçadas e os meios-fios lhe diziam mais que esses gestos formais e sem qualquer diferença de uma limpeza de jardim. Nas calçadas estavam as últimas folhas secas de outono e nisso sim havia um vínculo sentimental e cheio de perguntas. Sempre elas, as questões, as dúvidas, as indagações sobre as coisas e as pessoas. Durante todo o percurso, Artur ouvia os ecos das palavras lidas em sua mente. Nada lhe havia passado desapercebidamente, ainda mais com o que lhe havia sido dito e da maneira cúmplice como fora feito.
As coisas aconteceram de maneira simples e suave. Artur entrou novamente na casa que agora era oficialmente sua, com a mesma sensação de pertença que sempre tivera. Agiu como se nada tivesse mudado de lugar, como realmente não mudou. Sentou-se na cozinha, chorou um pouco e disse a si mesmo, outra vez, que haveria de se ter respeito por esses momentos. Fez um chá e o tomou lentamente, da maneira como sempre fizera. Disso tudo, restou-lhe a diferença, um saber sem certezas da construção constante de quem existe demasiado, demasiado humano. De nada arrependia-se, apenas sentia uma mistura de ausência e transbordamento. Havia ali duas mentes que aprenderam a pensar juntas e cuidaram de criar vínculos que se sobrepunham aos fenômenos do existir.
Artur reservou-se às lembranças dos últimos dias e, principalmente de como encontrou seu avô naquela manhã, há três dias. Ele dormiu e foi assim. Quando entrou no quarto do avô já o encontrou daquela maneira. Aquela essência poética havia se separado daquele corpo e Artur sentiu que assim havia sido antes mesmo de entrar no quarto. Sentiu o avô como nunca havia sentido antes. Não chorou e apenas lhe fez um carinho na mão. Chamou as autoridades competentes para lhe atestarem o óbito e tratou de todo o cerimonial de cremação. Houve um velório que durou seis horas, contrariando o pedido de seu avô, que lhe pediu rapidez nesses momentos. O velório talvez tenha sido mais cansativo que todo o resto, pois não havia lágrimas. Filhos e netos daquele homem cumpriram a formalidade sem choro. A única coisa verdadeira em todos esses anos, pensou Artur. Ver algum deles chorar seria falso demais.
Depois da cremação, foi-lhe entregue o vaso-urna de cor acinzentada e ele o deixou em cima da lareira. Resolveu que não queria dormir ali naquela noite e foi hospedar-se numa pequena pousada, administrada por pessoas conhecidas, que o receberam com toda a delicadeza que o momento reservava, mas sem tristeza. Quando acordou, pela manhã, doze horas já haviam se passado desde aquele momento em que colocou o vaso cinzento encima da lareira. Precisava sair daquele lugar e enfrentar a leitura de um testamento. Foi assim que ele viveu aquelas horas de misturas sentimentais e formalidades mecânicas. Esteve o tempo inteiro no comando de algo que ele não queria, mas que precisava ser feito conforme a vontade de quem lhe ensinou tudo sem ter-lhe dado uma única ordem.
Haveria de ser ali, naquele lugar, naquela casa, que Artur criaria seus filhos e ele sabia disso. As namoradas da universidade que levou ali foram poucas, mas eram bem recebidas por seu avô, que sempre fazia questão de abrir um bom vinho e celebrar um sentimento que se renovava dentro de seu neto. Havia sinceridade e poesia nesses gestos. Nada aconteceria com a pressa das cidades e nem tão lentas quanto a visão de um prado, mas aconteceriam. Simples e serenamente. Da cozinha, Artur olhou para o fundo do quintal, para o seu refúgio compartilhado e cheio de amor. Disse a si: “hoje não posso ir lá”. A cota de presença talvez fosse demasiada. Preferiu ir até a sala, acender a lareira e sentar-se na poltrona em frente. Levou consigo uma caneca de chá e todas essas lembranças. Nenhuma das duas coisas lhe fazia mal.
Isso tudo foi vivido. Isso tudo continua a ser construído. Assim pensou quando teve a sensação de estar rompendo os diques de sua compreensão. Tirou os papéis de seu blazer e pensou na sugestão do homem que agora carregava apenas dentro de si. Estavam ali as palavras escritas de uma pessoa que nunca se ausentou. Tomou a decisão de duvidar de qualquer pretensão e guardou aqueles papéis. Por que havia de queimar aquelas palavras? Duvidou de um passo, como sempre fizera. Viu o quanto havia de peso em cada coisa que ecoava em sua mente. Era um flutuar quase sem peso de cada uma dessas lembranças e palavras pensadas. Restou-lhe a vida. Essa mesma que seria compartilhada por duas presenças. Artur teria a companhia de si, como dois homens que caminham juntos com prazer e serenidade.
Ali estava a sua essência, com todas as modificações que havia sofrido e se obrigado a fazer. Tomou um gole de seu chá e depositou a caneca na mesa com tampo de vidro. Pensou que seria a hora de programar a aula de Filosofia da História que daria no dia seguinte, na Katholiek Hogeschool Brugge Oostende, onde havia se formado e concluído seu doutorado. Mais um pouco, pensou, só mais um pouco. Deixe-me duvidar do momento, falou para a vida que existia em sua mente. “Não há maior tesouro que um homem possa ter”. E ali ficou o tempo que sua dúvida permitiu. Nem mais um segundo duvidado, ao qual pudesse ser vivido sem o prazer de ter apenas e mais do isso.
https://link.medium.com/jVQD418lz9
W. Aguiar- Paraense, morou em SP, por décadas, depois Brasília, formado pela UNB Artes Cênicas,ator diretor, compositor, poeta, cantor/intérprete
Nenhum comentário:
Postar um comentário