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O neofascismo brasileiro flerta com o fundamentalismo. Além de infiltrar militares em cargos importantes, infiltra pastores duvidosos
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O neofascismo brasileiro se pretende uma neovanguarda do velho fascismo: mais “moderno”, malandro, mascarado. Se de início apenas se insinuava, ou se escondia em perfis fakes de ultraextremistas nas redes sociais, em pouco tempo passa a vazar nas medidas autoritárias do governo e agora transborda em nomeações de chefias militares em todas as esferas do poder público. A cada civil que cai, um militar é nomeado. Ou um pastor. Todos alinhados com a linha dura do Executivo.
O neofascismo brasileiro é um autoritarismo a um passo do totalitarismo e que, por conhecer bem a diferença entre os dois, recua sempre que a sua pulsão totalitária avança. No entanto, a cada grande avanço e pequeno recuo, ocupa mais territórios estratégicos. É guerra. E se há algo em que militares são especialistas é estratégia. Exemplo disso é a recente militarização de escolas públicas: várias aderiram, outras puderam recusar. Afinal, o neofascismo brasileiro não dá golpes com tanques nas ruas nem impõe medidas radicais sem anuência do Legislativo. Ao menos por enquanto. Ao menos até o próximo dia 15 de março, quando uma manifestação da extrema-direita sairá às ruas para protestar contra o Congresso, com o apoio entusiasmado (às vezes aberto às vezes velado) do próprio presidente da República. Ou seja, o Executivo, que já não liga muito para o Judiciário, muito menos para o STF, agora menospreza o Legislativo.
O neofascismo brasileiro flerta com o fundamentalismo. Além de infiltrar militares em cargos importantes, infiltra pastores duvidosos. Não à toa neofascistas se lançam em cruzadas moralistas contra o avanço dos costumes. São (em sua maioria) contra lgbtqs, contra conquistas de mulheres e negros, contra a liberdade de expressão, contra a arte reflexiva, contra a produção de cultura, contra certas religiões (o Núcleo de Atendimento às Vítimas de Intolerância Religiosa acaba de ser criado no Rio de Janeiro para atender vítimas de preconceito, sendo a maioria de religiões de matriz africana). Ah, neofascistas também são contra a educação pública: recentemente o ministro da educação revelou sua intenção de também militarizar as universidades públicas. Quem sobreviver, verá.
O neofascismo brasileiro é, infelizmente, uma ideologia eleita democraticamente pela maioria da população. Isso quer dizer que existe uma maioria neofascista no Brasil consciente do que é, do que quer. Uma gente que deseja voltar aos anos 1960/70, à época da ditadura, quando o Estado não só torturava, prendia, estuprava e matava opositores do regime, como também freava mudanças libertárias com um moralismo de Estado.
Há alguns anos fiz pesquisas exaustivas sobre os anos 1960-70 no Brasil e na França (quando escrevia o romance “Rio-Paris-Rio”) e, chocada, pude perceber que cada revolução de costumes ocorrida em países europeus e nos EUA na época era sufocada pelo governo militar brasileiro. Os hippies que revolucionavam o mundo eram presos nas ruas do Brasil por serem “cabeludos”. Brasileiras eram capachos de homens machistas, enquanto o feminismo em outros países explodia. O governo militar asfixiava a contracultura ao censurar letras de música, peças de teatro, livros e até telenovelas (conteúdos sexuais eram vetados pelo Estado). Ou seja, o totalitarismo passou – e muito – pelo moralismo tout court.
Enquanto isso, em Paris, o Maio de 68 começou exatamente com uma reivindicação na mudança de costumes. Alunos da Universidade de Nanterre se rebelaram contra o moralismo da reitoria, que os impedia de frequentar o dormitório das meninas. Foi o estopim de um megamovimento contra um conservadorismo que no fundo já incomodava aquela juventude. A insatisfação cresceu, pautas se politizaram, e uma manifestação de estudantes burgueses virou uma greve monumental de trabalhadores dos setores mais importantes da economia francesa. A França parou, literalmente. E ao final, trabalhadores obtiveram um aumento de 35% no salário-mínimo. Não foi uma "revolução", mas, no Brasil de hoje, obter 35% de aumento no salário-mínimo oficial seria certamente uma semi-revolução.
O neofascismo brasileiro é violento, repressor e anticonstitucional, mas não sai por aí prendendo cabeludos nas ruas. Pelo contrário, quer moralizar costumes e oficializar práticas neofascistas com o apoio do Judiciário e do Legislativo. O que mais preocupa atualmente é a possível aprovação de cerca de 70 projetos de lei que tornarão a manifestação um direito impossível. Se aprovadas as leis, o ato de bloquear uma rua, ou de usar máscara para se proteger do gás lacrimogêneo da polícia em protestos, constituirá crime. Pior: o Estado poderá monitorar pessoas por meio de suas mensagens privadas em redes sociais, ou por mapeamento genético. Pior ainda: o Estado poderá infiltrar espiões e interceptar conversas telefônicas. Tudo isso sem autorização da Justiça.
O neofascismo brasileiro, se assim continuar, oficializará o terrorismo de Estado. Para isso, já tenta inverter o ponto de vista: tramita no Congresso uma alteração radical na Lei de Terrorismo, com o objetivo de classificar movimentos sociais como “terroristas”. Para piorar, já está no Congresso aquele que é o projeto mais neofascista de todos: isentar de castigos ou processos os policiais e os militares que cometerem crimes durante operações de “garantia da lei e da ordem”. É bom lembrar, em caso de aprovação desses projetos, o Legislativo e o Judiciário (STF incluído) estarão oficialmente alinhados com o neofascismo.
O neofascismo brasileiro é uma epidemia. Neofascistas proliferam feito bactérias e atuam em bandos, sendo que a parcela mais radical se organiza em células nazifascistas. Segundo pesquisa recente da antropóloga Adriana Dias, da Unicamp, existem mais de 300 células formadas por pessoas que se autodeclaram hitleristas e/ou supremacistas-separatistas e/ou ligadas à Ku-Klux-Klan. Integrantes dessas seitas são milhares, brancos, machistas, organizados, muitos filiados a uma rede internacional de simpatizantes do nazismo. Perseguem judeus, negros, deficientes físicos, lgbtqs, defensores de direitos humanos.
O neofascismo brasileiro é composto por neofascistas convictos e neofascistas discretos (os envergonhados, que votaram nesse governo, mas não se acham neofascistas). Todos vibram, aberta ou secretamente, com uma ou várias das cenas a seguir: bandidos mortos pela polícia; feministas reprimidas; lgbtqs espancados; negros assassinados (especialmente a vereadora Marielle); manifestantes surrados pela PM; moradores honestos de favelas no Rio mortos por balas perdidas durante intervenções do exército.
O neofascismo brasileiro se alimenta de fake news que só reforçam suas práticas neofascistas. Mantém assim viva e lamentável sua grande bolha de ódio e preconceito. Recentemente ouvi alguém dizer que cabia a nós, humanistas, defensores dos direitos humanos (la gauche, quoi!), chegar a essas pessoas com informações verdadeiras, com ideais de liberdade-igualdade-fraternidade. Continuo e continuarei a escrever, mas ouvidos neofascistas só ouvem o que querem. Aliás, passei a vida toda escrevendo, informando, tanto nos meus livros quanto (mais recentemente) nas redes sociais. Conclusão: quem se identifica com a defesa dos direitos humanos se identifica com a defesa dos direitos humanos; quem acha que ainda somos macacos ataca direitos humanos porque não se identifica como humano.
O neofascismo brasileiro não é humano. Ao redor observo amigos (artistas, intelectuais, defensores dos direitos humanos em geral etc.) resistirem, muitos à base de antidepressivos e ansiolíticos, tentando dar conta do confronto desigual com neofascistas. Resistem de todas as formas e ainda se autoflagelam porque “não fizemos o suficiente” para barrar o neofascismo. Discordo. Fizemos muito para evitá-lo, e por mais que autocríticas sejam válidas, é difícil lidar com a barbárie. A barbárie muda de cara e de método; às vezes é gritante e totalitária, às vezes dissimulada e semidemocrática. No entanto: barbárie.
O neofascismo brasileiro é uma doença rara para a qual ainda não há cura. Enquanto houver uma maioria de brasileiros ancorados no ódio, no ressentimento e na ignorância, essas três melancolias que andam tão juntas, a barbárie crescerá. Afinal, o governo atual, liderado por um presidente ex-capitão do exército e por um vice-presidente general, representa seus milhões de eleitores que nos conduziram democraticamente ao matadouro.
O neofascismo brasileiro pouco a pouco carcome a Constituição, intimida instituições democráticas e nos aterroriza. Por isso, quando amigos estrangeiros me perguntam por que o povo não está nas ruas se manifestando, a resposta é óbvia. Os brasileiros que não votaram nisso têm medo. Estão aterrorizados. Trabalhadores de baixa renda não têm emprego, ou aceitam trabalhos precarizados, ou calam a boca diante de patrões (muitos neofascistas) para manter seus cargos. Ainda assim, algumas greves recentes (dos petroleiros, de caminhoneiros no Porto de Santos, dos funcionários da Casa da Moeda) chamam atenção para algo que pode, aos poucos, encorpar. Mas esses que aderem às greves também têm medo de perder seus empregos, já que o STF julga greves (a exemplo da mais recente dos petroleiros) como “abusivas e ilegais”, permitindo assim demissões de grevistas por justa causa. Enfim, todo regime autoritário é feito de gente tacanha, violenta e sem escrúpulos. Daí o medo, fundado e legítimo.
O neofascismo brasileiro é um tsunami. Sai arrastando e destruindo tudo – todos – pela frente. Isso porque a vontade de violência se espalha na velocidade do raio. Como lidar com um tsunami? Como lidar com a barbárie sem que para isso nos tornemos uns bárbaros? Não sei a resposta, assim como outras populações inteiras não souberam a resposta a regimes autoritários ao longo da História. Se soubessem, o Holocausto não teria acontecido, tampouco Paris teria se submetido à vergonhosa ocupação nazista.
Só sei é que lgbtqs, feministas, judeus, negros, deficientes físicos, enfim, todos nós, defensores dos direitos humanos, somos milhões e não vamos simplesmente sumir do mapa devido a cruzadas autoritárias e moralistas. Pelo contrário, o mês de março promete: no próximo dia 8 haverá protesto de mulheres contra o governo; no dia 14 manifestação em tributo a Marielle; no dia 18 passeata em defesa da Educação.
A forma como o Estado (a polícia, o Judiciário) vai lidar com esses protestos deve determinar o próximo passo: do autoritarismo para o totalitarismo? À suivre...
(nota da autora: todas as informações contidas nesse texto foram extraídas de matérias publicadas na grande imprensa, não de fake news de fontes duvidosas; na dúvida, dê um google!)
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