Lourdes Ramalho morreu. Só soube agora, pelo necrológio da Folha. Mas já se passou um mês. Esse delay ( para usar um anglicismo -ou para ser mais preciso, uso de expressão estrangeira - que ela odiaria e do qual com toda razão debocharia) é índice de quanto o teatro fora do eixo Rio- São Paulo ainda está alijado de seu lugar de direito.
Lourdes foi dramaturga reconhecida nacional e internacionalmente, com prêmios, montagens e estudos sobre sua obra. Nascida no Rio Grande do Norte, viveu a maior parte da vida em Campina Grande, Paraíba.Chegou à inacreditável idade de 96 anos.
Conheci-a no final dos anos 80, ao participar de um Festival em Campina Grande. Nós, convidados do evento, tínhamos, na lista de eventos a comparecer, um almoço em sua casa.
Confesso que titubiei. A arrogância típica da idade - e da ignorância - me fez supor que teria de fazer o beija-mão à celebridade local como pedágio para a excelente recepção que a dona do pedaço, digo do Festival, a extraordinária Eneida Maracajá (irmã siamesa de Ruth Escobar e Fanny Mikey, espanhola colombiana criadora do Festival Internacional de Bogotá) proporcionava a mim, meu amigo e crítico Jefferson del Rios e alguns outros a quem peço já desculpas pela memória me faltar.
Minha arrogância foi paga com altivez, inteligência e savoir faire. Lourdes, já uma senhora de idade ( ao menos para meus tenros vinte e poucos anos), nos recebeu como a amigos de longa data. Atenta, perguntou muito. Como se realmente estivesse interessada no que nós pobres sulistas andávamos aprontando.
Me explico. Lourdes, como muitos intelectuais nordestinos, têm uma ligação direta com a Europa. Sabem tudo que se passa nos centros do mundo - e um pouco, é claro, do eixo Rio-São Paulo. Meu saudoso amigo Antônio Cadengue , por exemplo, sabia exatamente o que havia para se ver em toda a saison parisiense. E estava ao par da última bibliografia do continente. Sem deixar de estar atento ao que se sobressaísse da elefantíaca temporada paulistana. Mas isso já é outra história.
Voltando ao almoço. Descobri uma dramaturga de grande qualidade, mulher inteligente e perspicaz que nos presenteou com parte de sua obra. Já em casa, li os textos com que me havia presenteado, e pude assim desasnar-me um pouco.
Seus textos são enraizados na fala e na sabedoria popular, mas lapidados com as ferramentas de quem domina o idioma em suas várias manifestações. A partir de uma certa época, o cordel passou a ser o gênero a partir do qual desenvolver suas obras. Lembra Suassuna, sim. Mas tem sua própria cor e valor. Até por que, se não se pode falar em feminismo, pode-se sim aventar a hipótese de um olhar feminino. Não no sentido de mais afetivo, "doce", "suave" - mas sim dono de um ponto de vista particular, mais voltado para o humano, o fragilmente encarnado, em contraponto às estruturas sociais e políticas. Feminino porque mais capaz de ver o outro.
Em tempo, o almoço era banquete. Das refeições que guardo na memória do corpo como ápices dessa forma de prazer. Cozinha típica paraibana, do sertão, dos Deuses, servida com a proverbial elegância e generosidade paraibana.
Lourdes Ramalho morreu. Mas sua obra está aí, vivíssima, a esperar que o Brasil olhe para dentro e encontre em seus autores, personagens e formas as armas necessárias para continuar sua luta.
Salve Lourdes Ramalho! Evoé, dramaturgas brasileiras!
Bibliografia
- ANDRADE, V.; MACIEL, D. (Org.). Teatro [quase completo] de Lourdes Ramalho. Mulheres. Maceió: EDUFAL, 2011.
- ANDRADE, V.; MACIEL, D. (Org.). Teatro [quase completo] de Lourdes Ramalho. Teatro em cordel. Maceió: EDUFAL, 2011.
- LEMAIRE, R. (Org.). A Feira e O Trovador Encantado. Campina Grande: EDUEPB, 2011.
- ANDRADE, V.; LÚCIO, A.C.M. (Org.). Maria Roupa de Palha e outros textos para crianças. Campina Grande: Bagagem, 2008.
http://bit.ly/33u7ZdZ
*QUEM É LOURDES RAMALHO (texto de Valéria Andrade)
Maria de Lourdes Nunes Ramalho, ou Lourdes Ramalho, como é conhecida literariamente, é uma escritora nascida no início da década de 1920 (23 de agosto de 1923), no sertão de Jardim do Seridó, fronteira do Rio Grande do Norte com a Paraíba, numa família de artistas e educadores: bisavô violeiro e repentista, mãe professora e dramaturga, tios atores, cordelistas e violeiros. Na infância, enquanto recebia o que havia de melhor em termos de educação formal no sertão, Lourdes Ramalho cresceu ouvindo cantorias de viola e histórias contadas por vendedores de folhetos e assim aprendeu, desde cedo, a amar sua terra e a cultura do seu povo.
Essa relação, de natureza atávica, da autora com a poesia popular, na realidade, se confunde com a história de seu bisavô, Hugolino Nunes da Costa, um dos expoentes da primeira geração de cantadores surgida no sertão paraibano em meados do século XIX, dando seqüência a uma linhagem iniciada por Agostinho Nunes da Costa, considerado o pai da poesia sertaneja nordestina. É deste contato com cantadores, cordelistas e contadores de história que vem o aprendizado dos procedimentos próprios da literatura popular, mais tarde assimilados em sua dramaturgia.
O QUE LOURDES RAMALHO ESCREVEU
A maior parte da produção literária de Lourdes Ramalho é de textos para teatro. Seu fazer literário passa, entretanto e desde sempre, pela poesia e, ultimamente, contempla, ainda, a área da genealogia – revelando-se também aí a pesquisadora de fontes históricas, interessada em descobrir as raízes judaicas da cultura nordestina e, por extensão, da sua própria família.
Suas primeiras peças foram escritas por volta dos seus 10/12 anos de idade, quando brincar de teatro era sua diversão favorita. Incentivada pelos tios e, sobretudo, pela mãe, a menina Lourdes colocava no papel as falas e as ações das personagens que re/inventava. Em seguida, comandava os ‘ensaios’ para as apresentações, de que também participava e que aconteciam em reuniões familiares e escolares. Datam desse tempo as primeiras versões de alguns dos seus muitos textos teatrais infantis.
Quando escreveu o primeiro texto teatral propriamente dito, em 1939, Lourdes era ainda uma adolescente. Aluna de um colégio interno, no Recife, indignada com a precariedade de condições da escola, põe no papel, em forma de comédia, seus protestos contra a falta de professores qualificados, a má qualidade da alimentação e as medidas disciplinares abusivas. Transformado em cena pela própria autora, o texto foi apresentado na festa de encerramento do ano letivo do colégio, detonando um embate entre pais e mestres, que resultou na expulsão da aluna-escritora.
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