...
da
cidade
eu
não lembro
são
duas a cada ano
uma
verde
outra
cinza
um
livro de poemas
que
dia é
noutro
não é
da
cidade
eu
não lembro
é
uma fotografia
que
nunca é a mesma
uma
hoje
outra
amanhã eu fui
noutra
década
Um homem brasileiro, nordestino – do interior –, mesmo em
pleno século XXI, está entre os melhores poetas do brasil, segundo o prêmio
Jabuti 2018 com a obra A Cidade – 2017, Ed.
Independente. Destaco isto, origem do autor como do Nordeste, pois está
segredado nas tramas das corporações livreiras e editoriais um certo
preconceito contra os nordestinos, salvo aqueles que dão lucro, muito lucro, ou
já possuem nome ou usam estratégias para fazê-los.
Mailson Furtado Viana,
27 anos, odontologista, nascido em Varjota, cidade do Ceará, mesorregião cearense.
Vindo de família simples, classe média, foi reconhecido como o melhor poeta na
edição do Prêmio Jabuti. Outras obras já estavam em circulação, como Sortimento (2012), Conto a Conto (2013) e Versos Pingados (2014).
Em mais de cinquenta anos, senão mais, o Jabuti não
concedeu prêmios a publicação de autores independentes. O poeta de A Cidade escreveu,
diagramou, ilustrou – da capa ao miolo, diga-se muito bem, simples e rica, sem
maiores arabescos inúteis. Boa colaboração de Renancio C. Monte nas ilustrações ou
tratativas.
O livro A Cidade é um único poema dividido em 4 partes –
presente, pretérito, pretérito mais que perfeito, com notas do próprio autor,
tipo um apêndice e mais um posfácio, A cidade pelo arquivo dos pé –
aliás, título excelente por Dercio Braúna.
Em que pese sua formação na área da saúde o
poeta sempre subiu nos galhos das árvores da poesia e sussurrou seu cantar
qual ave assovieira que
pulula para sentir novo acordes do vento e dizê-los também.
A Cidade é um grande poema, pela simplicidade e
complexidade ao atingir o cenário do que chamo de “simples”, seus
objetos, fatos de uma cidade, especificadamente do interior do Brasil, mas que
tem seus intestinos iguais a muitas outras.
Não sei o porquê, seu poema me relembra a
estrutura deslocadora de o Cão sem Plumas de João Cabral de Melo Neto, e só isto. Do
mesmo modo, a catação de fonemas e estruturas de Zelins do Rego ou as peraltices de
Manoel de Barros. Em nada o diminui, assim penso, ao inverso, fermenta-o. Quem
ler se mela no que ler e exerce suas estruturas, nada mais rico!
Os cheiros untados nos vocábulos escolhidos do poema
esparramam-se, dando roupagem nova ao verso. Seu álibi, a cidade, é apenas
invólucro para uma antropologia densa, poética. O Homem é sua
voltagem maior, sua caneca de matar sede.
eu me invado/em pitadas de saudades/do jardim de
infância na tia cleide/do passeio
domingo à tarde nas estradas do sombrio/do banho na beira do rio depois da
aula/da escalada na barragem paulo sarasate/das
traquinagens no quintal do vizinho/do roubo de tamarindos no caminho
de casa/....
eu me invado/dentro de mim/a cidade me invade...
eu me invado/dentro de mim/a cidade me invade...
O poeta desliza por entre protocolos lexicais simples que
radiografam o Brasil e por vezes o sintetiza como numa fotografia, ou o
congela em poucos linhas e
palavras construindo monumentos fatais, como assim:
eu me invado
dentro de mim
a cidade me invade
quando criança
minha cabeça barulhava
em não entender meu sangue
em não entender por que não tinha parentes na beira da esquina
como metade da sala tinha
donde eu era
donde eu vinha (pag 55)
Mailson Furtado é um nome que pula alto no universo da
poesia contemporânea. Peço que não corra, mesmo diante do espocamento bom de
sua obra. A poesia vem de veneta e trabalho dos ventos da cabeça e das visagens
do delírio.
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