Paloma Amado acervo particular |
Paloma Amado é escritora, cronista e filha do nosso Jorge Amado.Nas suas obras sempre está a presença do pai. Ela é uma mistura perfeita bem liquidificada -fisicamente do pai e da mãe , Zélia Gatai. Nesta Crônica ela nos revela detalhes da amizade de sua família com Caymmi.Paloma é simples direta e nos oferece uma leitura prazeirosa. Colhi esta crônica do seu facebook, somos amigos virtuais...quiça, um dia, presencial.Degustem:
Dodô, Jorginho e Papá. Acervo Particular |
Vale a pena ler de novo
Crônica de domingo, 23 de fevereiro de 2014: Paloma Amado
Salvador era bem diferente naqueles anos 60 de minha adolescência. A Avenida Manoel Dias, hoje via de trânsito intenso, cheia de bancos e lojas, era rua aprazível, de piso de terra, cheia de casas de veraneio e prédios pequenos de três andares. Num desses, bem no comecinho da Pituba, quase fronteira com Amaralina, moraram, por uns tempos, Stella e Caymmi. Já não lembro se vieram para passar o ano, se decidiram mudar de vez, ou se apenas veranearam. O certo é que para nós foi um grande acontecimento, era um ir e vir intenso entre a rua Alagoinhas e a avenida Manuel Dias.
Caymmi se queixou da falta de um aparelho de som, quer dizer de uma electrola (pronuncia-se é-lé-qui-tro-la, em bom baianês), ou pelo menos um rádio. Papai, comandante primeiro e único da vida dos amigos e parentes, resolveu imediatamente a questão:
-- Paloma, minha filha, empresta para seu tio o rádio russo.
Caymmi se queixou da falta de um aparelho de som, quer dizer de uma electrola (pronuncia-se é-lé-qui-tro-la, em bom baianês), ou pelo menos um rádio. Papai, comandante primeiro e único da vida dos amigos e parentes, resolveu imediatamente a questão:
-- Paloma, minha filha, empresta para seu tio o rádio russo.
Antes de continuar, preciso explicar como surgiu este aparelho em minha vida. Toda a vez que meus pais íam à Rússia, encontravam lá os rublos relativos aos direitos autorais, que não eram conversíveis em outra moeda, devendo ser gastos ali mesmo. Escritor de muito público em toda a União Soviética, há muito não ía a Moscou. Quando ali aterrissou em companhia de mamãe e Norma Sampaio -- mãe de Maria, minha amiga querida, de quem falo tanto --, encontrou um dinheirão à sua espera. Tratou de gastá-lo comprando presentes para deusetodomundo. Esse era o jeito dele, presenteador por natureza. Não teve quem não ganhasse regalo de sustância no final desta viagem. Até dona Célia, mulher de seu Zuca, o nosso jardineiro, colocou no pulso delicado relógio russo. A mim, além de um relógio, coube um rádio, que, segundo papai, era espetacular. Talvez ele se comportasse bem no frio do Norte, na Sibéria... mas aqui nos trópicos perdeu a voz, danou a engasgar, uma estática absurda, não importava se em ondas médias, longas ou curtas. Eu reclamei, mas não houve jeito, o bicho teimava em ser péssimo.
Voltando ao início da história, papai sugeriu... Não, não sugeriu, mandou! E eu emprestei o rádio, dizendo a Caymmi que era excelente, tinha um som límpido e claro, tocava Tchaikovisky, Prokofiev e até Stravinsky, já que era russo. Ele ia se divertir muito. Na verdade nos divertimos todos, pois ao ouvir o esporro medonho que o rádio fez ao ser ligado, Caymmi caiu na gargalhada e começou toda uma história comigo que durou por toda a vida.
-- Que maravilha de som!, ele dizia se fingindo de sério. É o melhor mimo que já ganhei em minha vida!
-- E quem te disse que eu estou dando? Só estou emprestando. E é empréstimo a prazo curto, nada de levar para o Rio com você...
O rádio foi para o Rio com o casal Caymmi, é claro! Quando nos encontrávamos, eu o pedia de volta, ele retrucava que era dele. Chegou a me telefonar do Rio para a Bahia somente para dizer que o rádio tinha melhorado muito, já quase dava para se ouvir alguma coisa.
-- Que maravilha de som!, ele dizia se fingindo de sério. É o melhor mimo que já ganhei em minha vida!
-- E quem te disse que eu estou dando? Só estou emprestando. E é empréstimo a prazo curto, nada de levar para o Rio com você...
O rádio foi para o Rio com o casal Caymmi, é claro! Quando nos encontrávamos, eu o pedia de volta, ele retrucava que era dele. Chegou a me telefonar do Rio para a Bahia somente para dizer que o rádio tinha melhorado muito, já quase dava para se ouvir alguma coisa.
A última vez que vi Stella e Caymmi, papai já tinha morrido. Fui com mamãe visitá-los no apartamento em Copacabana. Falando pouco, olhar um tanto perdido, como ficara o de papai no fim de sua vida, ainda assim estava alegre, pediu prenda a mamãe. De repente me olhou, riu, e disse:
-- E o rádio russo, Papá?
-- E o rádio russo, Papá?
Até domingo, com a terceira e última crônica da série "Centenário de Caymmi", no Vale a pena ler de novo.
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