Por volta do final dos anos 80, início dos anos 90, conheci Caio
Fernando Abreu num restaurante Macrobiótico, próximo à Avenida Paulista, numa
daquelas travessas do início da avenida, tipo Bela Cintra.
Quase que diariamente nos víamos e nos cumprimentávamos sem nos
chamar pelo nome. Era reservado, não tinha um nome ainda expandido e eu tinha
lido apenas uma obra sua: “O Ovo Apunhalado”. Dos contos da referida obra, “Eles”
me chamou atenção por seu início, não me perguntem porquê, talvez a sutileza do
mistério; aliás, diga-se como detalhe, ao comprar livros de contos abro ao
acaso e entro naquele que primeiro chama atenção, e foi aquele – “Eles”:
'O que eles deixaram
foram estes três postulados: importante é a luz, mesmo quando consome; a cinza
é mais digna que a matéria intacta e a salvação pertence apenas àqueles que
aceitarem a loucura escorrendo em suas veias. Nem foram notados a princípio,
por isso ninguém sabe dizer a data exata de sua chegada. É provável que desde o
começo tivessem se estabelecido no bosque, afinal você sabe que por aqui não há
outro lugar onde pessoas como eles pudessem passar assim despercebidas como
eles passaram, a princípio. Aqui todos se conhecem, tudo é pequeno e sem
mistério, ou era, antes, há apenas esse bosque sobre a colina, e talvez por
medo de penetrarem no impenetrável de um mistério qualquer, ou mesmo por preguiça
de se movimentarem de seus lugares, os moradores daqui nunca vão ao bosque, ou
nunca iam, não sei mais. Apenas alguns namorados, mas muito raramente, porque
ao voltarem todos sabiam que tinham ido e as mulheres daqui, as mulheres mais
velhas, não perdoam jamais. Por isso, às vezes, eu penso que talvez eles
estivessem aqui desde sempre, desde um começo que não se sabe quando começou. E
ninguém saberia jamais se aquele menino não tivesse ido lá....'
Detalhe, vejam o que ele escreveu para o livro:
"O ovo revisitado: O
ovo apunhalado foi, e ainda é, um livro importante para mim. Primeiro porque,
para publicá-lo, precisei voltar de um exílio voluntário de Londres para o
Brasil e esquecer uma planejada viagem à Índia (com escala em Katmandu, claro,
afinal era o comecinho dos anos 70 e eu queria tudo a que tinha direito).
Depois, porque marcou a transição entre um certo amadorismo dos dois livros
anteriores — mal-editados, maldistribuídos — para uma espécie de
profissionalismo. E digo espécie porque, hoje, quase dez anos depois, esse
pro-fis-si-o-na-lis-mo continua ainda em esboço. Ele foi publicado em 1975, ano
marco daquela coisa confusa, gostosa e passageira que batizaram como boom da
literatura brasileira. Ano de Zero, de Ignácio de Loyola, de Feliz Ano Novo, de
Rubem Fonseca, de A festa, de Ivan Angelo — livros e escritores que muito
admiro. Mas isso foi coincidência: na verdade, os contos que o compõem foram
escritos entre 1969 (o mais antigo é “Réquiem por um fugitivo”) e 1973 — em
Campinas (na fazenda de Hilda Hilst), em São Paulo, Porto Alegre e,
principalmente, no Rio de Janeiro. Aquele Rio do começo dos anos 70, com a
coluna “Underground” de Luiz Carlos Maciel, no Pasquim, do píer de Ipanema, com
as dunas da Gal (ou do barato), dos jornais alternativos tipo Flor do Mal.
Tempo de dançadas federais. Tempo de fumaça, de lindos sonhos dourados e negra
repressão. Tempos de Living Theater expulso do país, do psicodelismo invadindo
as ruas para ganhar seus contornos tropicais. Tempos da festa que causou esta
rebordosa de agora, e primeiras overdoses (Janis, Jimi). Eu estava lá. Metido
até o pescoço: apavorado viajante. De alguns textos (como “Retratos”), sou
capaz de lembrar até a hora e a cor do dia em que escrevi (no apartamento de
meu primo Francisco Bittencourt, sobre o Cinema Roxy, em Copacabana). De outros (como “Eles”),
não consigo lembrar absolutamente nada. Nem sequer precisar de onde exatamente
brotaram — de que região submersa da cabeça, de que fugidia impressão do real.
Mistério. Revê-los foi como rever a mim mesmo. Com algum mau humor
pelas ingenuidades cometidas. Eles se ressentem do excesso: são repetitivos
(pés, margaridas, sinas, anjos, maldições), paranóicos e, freqüentemente,
pudicos demais. Afinal, eu tinha pouco mais de vinte anos. Eu só estava
tateando. Como ainda estou. E não sei se isso justifica. Tive impulsos fortes
de desistir. De não enfrentar, ou publicar tudo exatamente igual à primeira
edição ou, finalmente, não publicar nada. Mas fiquei pensando que — quem sabe?
—, mesmo com todas as falhas e defeitos, este Ovo talvez sirva ainda como
depoimento sobre o que se passava no fundo dos pobres corações e mentes daquele
tempo. Amargo, às vezes violento, embora cheio de fé. Essa mesma que me
alimenta até hoje, e que me faz ser capaz — como neste momento — de ainda me
emocionar ouvindo os Beatles cantarem coisas como “all you need is love, love,
love”. Terminada a revisão, fica uma certeza não sei se boa ou meio suicida de
que, apesar de tudo, não arredei um pé das minhas convicções básicas. Na época,
foi difícil publicá-lo. Da primeira edição, foram cortados alguns trechos
(incluídos nesta) considerados “fortes” pela instituição cultural que o
co-editou. Foram também eliminados três textos “imorais”, que não incluí nesta
porque tornariam o livro ainda mais repetitivo do que ele já é. E, finalmente,
lembrando a longa batalha pela publicação, não posso deixar de dedicá-lo, com
imenso carinho e saudade, à memória de uma pessoa linda, sem a qual este Ovo
não teria saído das gavetas burocráticas: Lígia Morrone Averbuck. Lá do outro
lado, talvez ela sorria, cúmplice. Ou complacente.” Caio Fernando Abreu São
Paulo, agosto de 1984
Não sou sujeito de paparicar meus autores estimados, sobretudo em
presença; a obra citada, que havia lido, me impressionara por um novo estilo e
destilava índices de um novo tipo de narrativa textual, uma ficção bem acertada
e com boas metáforas, sobretudo para o momento que vivíamos no país.
Conhecia por leitura sua vida, seus contatos, em especial com
Hilda Hilst, o que mais me encantava ainda: um poeta e outro agregados por um
doce de loucura de juízo.
Depois disto encontrei-me com ele e Paula Dip, rapidamente em um
lançamento que não mais me lembro. Nunca mantivemos papos ativos sobre qualquer
assunto, apenas comprimentos cordiais. Ele sabia meu nome, talvez pela
garçonete do restaurante aqui citado, pois com ela eu tinha amizade.
Fui leitor de quase todas as suas obras, seus títulos sempre me
chamaram atenção. Tomo aqui um que a Revista Prosa e Verso publicou ‘A morte
dos girassóis’ presente no livro “Pequenas Epifanias”. Este também marcou-me.
Paulo Vasconcelos
Caio Fernando Abreu |
‘A morte dos girassóis’
– um conto de Caio Fernando Abreu
http://bit.ly/2HjYDGH
Caio F. Abreu viveu pouco e intensamente. Ao deixar este mundo aos 48 anos, o escritor gaúcho que se tornou conhecido com o livro “Morangos Mofados”, passara pelo existencialismo, pelo movimento beatnik, Woodstook, geração hippie, golpe militar, desilusão contemporânea e pelo fantasma da Aids, até encerrar sua existência no jardim, fazendo aquilo de que mais gostava: cuidar das plantas.
“Nos últimos tempos, quando não conseguia mais escrever, ele ia para o jardim cuidar das rosas. Ia cuidar da vida: tirar da terra a vida – e o Caio morrendo. Fazer desabrochar a flor – e o Caio morrendo. Num planeta enfermo como o nosso, num país, numa sociedade onde impera a boçalidade, a volúpia materialista, foi magnífico contar com o Caio.”
– Lygia Fagundes Telles, em homenagem ao amigo Caio F. Abreu (quando ele partiu).
– Lygia Fagundes Telles, em homenagem ao amigo Caio F. Abreu (quando ele partiu).
Leia o conto “A morte dos girassóis”
Anoitecia, eu estava no jardim. Passou um vizinho e ficou me olhando, pálido demais até para o anoitecer. Tanto que cheguei a me virar para trás, quem sabe alguma coisa além de mim no jardim. Mas havia apenas os brincos-de-princesa, a enredadeira subindo tenta pelos cordões, rosas cor-de-rosa, gladíolos desgrenhados. Eu disse oi, ele ficou mais pálido. Perguntei que-que foi, e ele enfim suspirou: “Me disseram no Bonfim que você morreu na Quinta-feira.” Eu disse ou pensei em dizer ou de tal forma deveria ter dito que foi como se dissesse: “É verdade, morri sim. Isso que você está vendo é uma aparição, voltei porque não consigo me libertar do jardim, vou ficar aqui vagando feito Egum até desabrochar aquela rosa amarela plantada no dia de Oxum. Quando passar por lá no Bonfim diz que sim, que morri mesmo, e já faz tempo, lá por agosto do ano passado. Aproveita e avisa o pessoal que é ótimo aqui do outro lado: enfim um lugar sem baixo-astral.”
Acho que ele foi embora, ainda mais pálido. Ou eu fui, não importa.
Mudando de assunto sem mudar propriamente, tenho aprendido muito com o jardim. Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora parecem flores simples, fáceis, até um pouco brutas.
Pois não são. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar enfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos destruidores. Depois de meses, um dia pá! Lá está o botãozinho todo catita, parece que já vai abrir.
Mas leva tempo, ele também, se produzindo. Eu cuidava, cuidava, e nada. Viajei por quase um mês no verão, quando voltei, a casa tinha sido pintada, muro inclusive, e vários girassóis estavam quebrados. Fiquei uma fera. Gritei com o pintor: “Mas o senhor não sabe que as plantas sentem dor que nem a gente?” O homem ficou me olhando tão pálido quanto aquele vizinho. Não, ele não sabe, entendi. E fui cuidar do que restava, que é sempre o que se deve fazer.
Porque tem outra coisa: girassol quando abre flor, geralmente despenca. O talo é frágil demais para a própria flor, compreende? Então, como se não suportasse a beleza que ele mesmo engendrou, cai por terra, exausto da própria criação esplêndida. Pois conheço poucas coisas mais esplêndidas, o adjetivo é esse, do que um girassol aberto.
Alguns amarrei com cordões em estacas, mas havia um tão quebrado que nem dei muita atenção, parecia não valer a pena. Só apoiei-o numa espada-de-são-jorge com jeito, e entreguei a Deus. Pois no dia seguinte, lá estava ele todo meio empinado de novo, tortíssimo, mas dispensando o apoio da espada. Foi crescendo assim precário, feinho, fragilíssimo. Quando parecia quase bom, cráu! Veio uma chuva medonha e deitou-se por terra. Pela manhã estava todo enlameado, mas firme. Aí me veio a ideia: cortei-o com cuidado e coloquei-o aos pés do Buda chinês de mãos quebradas que herdei de Vicente Pereira. Estava tão mal que o talo pendia cheio dos ângulos das fraturas, a flor ficava assim meio de cabeça baixa e de costas para o Buda. Não havia como endireitá-lo.
Na manhã seguinte, juro, ele havia feito um giro completo sobre o próprio eixo e estava com a corola toda aberta, iluminada, voltada exatamente para o sorriso do Buda. Os dois pareciam sorrir um para o outro.Um com o talo torto, outro com as mãos quebradas. Durou pouco, girassol dura pouco, uns três dias. Então peguei e joguei-o pétala por pétala, depois o talo e a corola entre as alamandas da sacada, para que caíssem no canteiro lá embaixo e voltassem a ser pó, húmus misturado à terra, depois não sei ao certo, voltasse à tona fazendo parte de uma rosa, palma-de-santa-rita, lírio ou azaléia, vai saber que tramas armam as raízes lá embaixo no escuro, em segredo.
Ah, pede-se não enviar flores. Pois como eu ia dizendo, depois que comecei a cuidar do jardim aprendi tanta coisa, uma delas é que não se deve decretar a morte de um girassol antes do tempo, compreendeu? Algumas pessoas acho que nunca. Mas não é para essas que escrevo.
(Zero Hora, 18.3.1995)
Publicado no livro “Pequenas epifanias”. Caio Fernando Abreu. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2014.
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