PARA MINHA MÃE QUE ME ENSINOU A GOSTAR DE LER E ENTORTAR PALAVRAS!
LOURDES VASCONCELOS |
Dizem o mesmo de
mim, não sei, mas é possível. Mas contundente mesmo é vermos na velhice, em sua
progressão, variantes de máscaras que ocupam o corpo da mãe/mulher e não pedem
por favor, entram, infiltram-se, silenciam-se , transmutam-se à elas, umas não
tem memória, outras já não recitam, outras já comem demais, outras menos, tomam
remédios vários, gritam, não dormem à noite, dizem ver vultos. Pela manhã
contemplo seu rosto, é uma outra mulher, tem traços da anterior originária, mas
não é mesma. Trafega com um riso comum, é ele sim, é original, mas não é a
mesma, admito. E quem são essas tantas mulheres? Gostam de enrolar os cabelos
como criança, curtem boneca, a gula se transforma e se contradiz ouvindo Nelson
Gonçalves?
...Mãe,
sonhei ontem que não eram mulheres, eram máscaras e cérebros que trocamos ao
chegarmos à certa idade, mas o pior é que já não me conheces tanto como antes e
do mesmo modo eu a ti, o tempo comeu a ti e a mim, cansaram-se vísceras,
células, cérebro, foi isto?
—
Não respondes? Que mulher é esta que não responde?
A cigana ao meu lado, no sonho, disse-me ao ouvir:
ela está grávida, não a gravidez que enche, essa seca, sim, ela seca e seca,
chama-se a morte, é a semente brotando ao avesso.
Todos trazemos inoculados essa gravidez potencial,
é esta semente que se gruda no corpo; o ser traz em si a vida/morte, semente
como espécie de semente/fruto, para nos alimentar e sem sabermos alimenta,
faz-nos felizes, infelizes, nos bons e maus encontros e afetos, depois alimenta
a terra, sim, a terra, com a carne, ossos, gorduras, nervos, e aquele corpo
deixa marcas dos seus afetos nos outros. Quanto a essas mulheres que nela
habitaram, foram as várias faces da semente em gestação, mas olha, não as
desprezes, tu és também extensão do mesmo corpo dela e tens o mesmo fruto
dentro.
E mais, não dê tanto valor a vida, ela é assim
mesmo: já está gravado em você o que ocorreu, vá e viva, tome algo, grite e
seja feliz, a vida é cínica e você vai ver sempre esta cena, ela igual ao
nascer e assim é o nascimento: lá a criança tem várias faces, um bebê vai
mudando também, a bochecha, orelha, dente, cabelo, assim, do mesmo modo, como
ela mudou, já foi bebê; ela agora é um bebê velho só, deixe-a dormir para se
acostumar com a morte que carrega, será mais fácil, o fogo, a terra lhe
receberá como tem recebido a todos. Ah! Esqueça um pouco, porque além de tudo
ela já está esquecida, o fruto morte faz eles esquecerem tudo, vá, saia, ande,
busque um novo encontro, a vida é assim mesmo, a morte é para quem quer viver,
como disse o poeta, não perca tempo, viva... é tudo pequeno e simples, vague,
veja, perscrute, pegue, cheire, beba, guarde, desguarde, limpe os olhos, rapaz!
Você está chorando: isso é melancolia, saudade, aí vira superstição, não, não,
ajeite-se um pouco, só um pouco de alegria no rosto e deixe a sua semente lá
dentro em paz, vá ser feliz enquanto pode, não façamos dramas naquilo que não
sabemos ao certo e o que sabemos é que é vida e morte — esse par-ímpar — que
somos e nos festeja dentro de nós. Sempre, é regra, voltamos para a natureza de
onde viemos, somos atributo dela e isto é recompor a produção e extensão de
ser: Natureza/Deus, sejamos cordatos, outros precisam nascer com a mesma
semente e o tempo não para.
Faz assim, vai até o corpo dela e poete e diz assim, como Eugénio de Andrade:
Faz assim, vai até o corpo dela e poete e diz assim, como Eugénio de Andrade:
No mais fundo de
ti,
eu sei que traí, mãe
eu sei que traí, mãe
Tudo porque já
não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.
‘’’’’
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses
como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.
talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu
esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha — queres
ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda
aperto contra o coração
-->
Paulo Vasconcelos
Nenhum comentário:
Postar um comentário