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segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

O Rio de Manoel de Barros

Manoel de Barros-1916/2014 


"Ser menino aos trinta anos, que desgraça
Nesta borda do mar de Botafogo!
que vontade de chorar pelos mendigos!
Que vontade de voltar para a fazenda!
Por que deixam um menino que é do mato
Amar o mar com tanta violência? "
Manoel de Barros, Poemas concebidos sem pecado, 1937

O fragmento do poema acima é certificação do Rio, de sua água que ele tanto admirou. Nunca deixou o Rio. Tinha apartamento no Leblon, onde sempre passava alguns meses na cidade até a fragilização de sua saúde.

Nas comemorações dos seus 100 anos de vida, no Rio de Janeiro, a Unirio, por iniciativa do professor Elton de Souza, realizou, nos dias 25 e 26 de novembro,  um evento em homenagem ao escritor. Nada mais justo. Ali ocorreram mesas de debates e depoimentos com os títulos: “Manoel de Barros: uma didática da invenção”; “Poesia é sabedoria que não vem em tomos” e “É preciso transver o mundo”.
Como convidado a integrar a primeira mesa, expus minhas considerações acerca do poeta, sob o título “A poesia como ritual de existência”. Aqui saem alguns fragmentos.
Manoel de Barros morou por trinta anos na cidade do Rio de Janeiro, para onde foi, ainda adolescente fazer ginásio, ensino médio e onde também frequentou Universidade, curso de Direito. Lá, tornou-se conhecido, via seus amigos, como Antônio Houaiss, Millôr Fernandes, Joao Antônio, Fausto Wolff, entre outros, e teve suas primeiras obras publicadas. No Rio o poeta iniciou com afinco suas leituras: leu a obra de Vieira através de seu tutor do colégio Marista, depois mergulhou em outros autores da época, não apenas na literatura ficcional; foi à Filosofia, Psicanálise, Sociologia, Antropologia e por aí vai. Conheceu vários poetas, como Drummond (com quem trocou cartas), Bandeira e outros tantos. Integrou-se ao Partido Comunista Brasileiro, mas depois retirou-se, embora, em seus, poemas aclaram-se suas ideias do coletivo e do povo.
Lá seu olhar sempre esteve no simples, por exemplo os peixeiros, e nas poucas vezes que advogou o fez para eles, via seu sindicato. Voltou para o Mato Grosso, em 1958, para assumir as terras deixadas pelo pai falecido, com o apoio da mulher D. Estela, mineira, que conheceu na cidade e com quem lá se casou.

Poetar para Barros foi reconstruir a vida, ou inventá-la dentro do dia a dia nos seus mais simples olhares, fazer, contemplar e mentir, mentir pela palavra, para dizer mais. A palavra não é abundante, o que a faz como tal é esse ritual de combiná-las, dissecá-las, como um desassufoco; é pô-las pelo avesso, é questionar seu significante é desdizê-la, raspá-la. Seu fazer e seu olhar possuem a coragem de se desequilibrar para encontrar seu equilíbrio possível:

“Não quero saber como as coisas se comportam.
Quero inventar comportamento para as coisas.
Li uma vez que a tarefa mais lídima da poesia é a de equivocar o sentido das palavras.
Não havendo nenhum descomportamento nosso
Senão que alguma experiência linguística
Noto que as vezes sou desvirtuado a pássaros,
que sou desvirtuado em árvores, que sou desvirtuado para as pedras.
Mas que essa mudança de comportamento gental para animal, vegetal ou pedral”
Manoel de Barros, Ensaios Fotográficos,2000

Escrever, caçar a palavra, reformar ou desformar a gramática poética foi seu oficio de existência. Manoel tinha um poder de pensar travessando o erudito e o popular, e assim foi de Heidegger emendar com a frase do Bugre
Peter Pál Pelbart, ao fazer o prólogo de sua tradução de Crítica e Clínica, de Gilles Deleuze, nos apresenta com clareza a questão da literatura que bem cabe para o caso de Barros:

“[...] o problema de escrever: o escritor, como diz Proust, inventa na língua uma nova língua, uma língua de algum modo estrangeira. Ele traz a luz novas potencias gramaticais ou sintáticas. Arrasta a língua para fora de seus sulcos costumeiros, leva-a a delirar. Mas o problema de escrever é também inseparável de um problema de ver e de ouvir: com efeito, quando se cria uma outra língua no interior da língua, a linguagem inteira tende para um limite ‘assintático’, ‘agramatical’, ou que se comunica com seu próprio fora.
O limite não está fora da linguagem, ele é o seu fora: e feito de visões e audições não-linguageiras, mas que só a linguagem torna possíveis”
Gilles Deleuze, Crítica e Clínica, 1997

Nesse caminho o poeta diz e repete em sua obra o seu contexto criador apontando para um logos frágil do homem. Assim, sua salvação é a criação. Diz Manoel de Barros:

Um esforço para ficar inteiro é que é essa atividade poética. Minha poesia é hoje e sempre foi a catação de eus perdidos ofendidos. Sinto quase orgasmo nessa tarefa de refazer-me [...].
Escrevo meus poemas procurando o rumor das palavras mais que o significado dela. Penso que rimo por dentro, e isso; e coisa ínsita, não da matéria, Meu processo de escrever é ir desbastando a palavra até os seus murmúrios e ali encaixar o que tenho em mim de desencontro [...]
Encontro estímulos para escrever em mim mesmo. Na necessidade de ser. Poderia inventar que encontro estímulos no pôr do sol, no beco no amor das pessoas. [...] Escrevo lentamente, todos os dias, tentando ajuntar os pedaços de mim lançados por aí. Ajeito um arremedo do que sou. Escrevo uma pose de mim”
Manoel de Barros,  Conversas por escrito in: Obra completa, 1990


Barros vai aos deslimites do fonema para tingir o simples da palavra na sua complexidade poética, como um catador de cajus que os torra, para obter a sua castanha, e é no fogo com o fruto que ele acredita e espera o surgimento da amêndoa farta - do dentro - do caju, o poema.
Mas me ajuda melhor aqui Elton de Souza:

“atingir o deslimite não significa destruir-se o negar-se. Ao contrário, é limite que destrói a invenção que e pode e se deseja. O deslimite, portanto, é uma experiência com a vida e não com a morte (nos vários sentidos que essa palavra pode ter)”.
Elton de Souza. Manoel de Barros: a poética do deslimite, 2010

O Rio de Janeiro foi um dos seus sabores de águas, entre tantas águas deste Brasil.

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