Um emeio amassado
Na crônica das praças e ruas, as histórias de amor se encontram nos lixos e terminam na página impressa
Vivo em uma cidade de poucas praças, quase meia dúzia. Exagero, talvez. São Paulo não gosta mais de praças, a não ser para vender. Depois de maduro, viageiro, voltei a usufruir da praça para por os músculos esticados e fotografar. Sim, fotografo com os olhos e os ouvidos, e ainda pego a escuta e as imagens das ruas (as ruas por vezes se fazem praça, como a Avenida Paulista, à noite). Frequento e sugo tudo, como crônica, nas vozes dos seus usuários. É bacana e tomo as conversas como suco da vida que os homens dizem.
Lembrei-me, outro dia, de Rubem Braga, Antônio Maria, Fernando Sabino, Drummond, Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector – todos tomadores desses sucos nas crônicas, em que expunham o invisível (ou visível, criado pela literatura), inspirados nos “oooosss”, isso mesmo, nos “ooossss” do cotidiano, soletrando amores, desamores, política e tudo mais. Ainda há outros, raros, hoje em dia, com a destreza poética que aqueles teciam.
Na miudeza dos fatos, no tosco do simples, o cronista, que beira a poesia e às vezes se aproxima do conto, faz a narrativa sem deixar de estar no ficcional – afinal a realidade só existe literariamente pela palavra e esta é o real possível, fabricado no acontecimento literário.
Paulo Mendes Campos, disse que O Amor Acaba: “(…) no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba (…)” (bit.ly/1CFFawq).
Em Salvador, andando pelo bairro do Itaigara, em uma praça, ouvi a conversa entre duas amigas. Elas falavam do fim de um relacionamento. Fingindo cansado, sentei-me para ouvir a crônica. A acabante (caso de amor) mostrava uma cópia do “emeio” que mandou e lia firme. Ao cabo, disse: “Amiga, acabou. Tive força, esse bródi, foda-se”. Levantou e jogou aquela cópia na caixa de lixo. Voltei a correr e, ao retornar, elas já haviam ido embora. Fucei a lixeira e lá estava o “emeio”.Amassado. Guardei-o. E aqui vai reproduzido, claro, com as devidas readaptações:
Flávio, só estas palavras: não quero mais suas fitas, seus gestos iguais, como todos os seus amigos, eles dizem nada, eu quero é mão, cabeça, tronco e dedão. Cansei de repetição: I love you, mina, nem falar baiano tu sabe, tu gosta de Mac, Naturela, eu, de punheta de mãe Du e seu abará. Teu tanquinho secou, quero o verde, um amigo de algodão, como já falei, lembra? Continue a ler Paulo Coelho e dançar com as outras minas do Horto. Eu quero é o dito, de: minha nega, minha flor, meu peixe, oi de fruta madura. Stop, change, como diz tu, sou virada e sou baiana, volta pra tua terra, dos sul, eu tenho saia dobrada e virada e sem suor. Suzana.
Saudades da crônica, sou aprendiz da crônica poética. Ainda chego lá.
*É paraibano, mestre e doutor pela ECA-USP. Professor de Teoria Literária em universidades privadas e consultor editorial da área de Literatura, além de contista e poeta com livros publicados (paulovasconcelos@brasileiros.com.br).
Link curto: http://brasileiros.com.br/IuYr3
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