Manoel de Barros-1916/2014
"Ser
menino aos trinta anos, que desgraça
Nesta borda do
mar de Botafogo!
que vontade de
chorar pelos mendigos!
Que vontade de
voltar para a fazenda!
Por que deixam
um menino que é do mato
Amar o mar com
tanta violência? "
Manoel de Barros, Poemas concebidos sem
pecado, 1937
O fragmento do poema acima é certificação do
Rio, de sua água que ele tanto admirou. Nunca deixou o Rio. Tinha apartamento
no Leblon, onde sempre passava alguns meses na cidade até a fragilização de sua
saúde.
Nas comemorações dos seus 100 anos de vida, no
Rio de Janeiro, a Unirio, por iniciativa do professor Elton de Souza, realizou,
nos dias 25 e 26 de novembro, um evento
em homenagem ao escritor. Nada mais justo. Ali ocorreram mesas de debates e depoimentos
com os títulos: “Manoel de Barros:
uma didática da invenção”; “Poesia é sabedoria que não vem em tomos” e “É
preciso transver o mundo”.
Como convidado a integrar a primeira mesa, expus
minhas considerações acerca do poeta, sob o título “A poesia como ritual de existência”.
Aqui saem alguns fragmentos.
Manoel de Barros morou por trinta anos na cidade
do Rio de Janeiro, para onde foi, ainda adolescente fazer ginásio, ensino médio
e onde também frequentou Universidade, curso de Direito. Lá, tornou-se
conhecido, via seus amigos, como Antônio Houaiss, Millôr Fernandes, Joao
Antônio, Fausto Wolff, entre outros, e teve suas primeiras obras publicadas. No
Rio o poeta iniciou com afinco suas leituras: leu a obra de Vieira através de
seu tutor do colégio Marista, depois mergulhou em outros autores da época, não apenas
na literatura ficcional; foi à Filosofia, Psicanálise, Sociologia, Antropologia
e por aí vai. Conheceu vários poetas, como Drummond (com quem trocou cartas),
Bandeira e outros tantos. Integrou-se ao Partido Comunista Brasileiro, mas
depois retirou-se, embora, em seus, poemas aclaram-se suas ideias do coletivo e
do povo.
Lá seu olhar sempre esteve no simples, por
exemplo os peixeiros, e nas poucas vezes que advogou o fez para eles, via seu
sindicato. Voltou para o Mato Grosso, em 1958, para assumir as terras deixadas
pelo pai falecido, com o apoio da mulher D. Estela, mineira, que conheceu na cidade
e com quem lá se casou.
Poetar para Barros
foi reconstruir a vida, ou inventá-la dentro do dia a dia nos seus mais simples
olhares, fazer, contemplar e mentir, mentir pela palavra, para dizer mais. A
palavra não é abundante, o que a faz como tal é esse ritual de combiná-las,
dissecá-las, como um desassufoco; é pô-las pelo avesso, é questionar seu significante
é desdizê-la, raspá-la. Seu fazer e seu olhar possuem a coragem de se desequilibrar
para encontrar seu equilíbrio possível:
“Não quero saber como as coisas se comportam.
Quero inventar comportamento para as coisas.
Li uma vez que a tarefa mais lídima da poesia é
a de equivocar o sentido das palavras.
Não havendo nenhum descomportamento nosso
Senão que alguma experiência linguística
Noto que as vezes sou desvirtuado a pássaros,
que sou desvirtuado em árvores, que sou
desvirtuado para as pedras.
Mas que essa mudança de comportamento gental
para animal, vegetal ou pedral”
Manoel de
Barros, Ensaios Fotográficos,2000
Escrever,
caçar a palavra, reformar ou desformar a gramática poética foi seu oficio de
existência. Manoel tinha um poder de pensar travessando o erudito e o popular, e
assim foi de Heidegger emendar com a frase do Bugre
Peter Pál Pelbart, ao fazer o prólogo de sua
tradução de Crítica e Clínica, de Gilles
Deleuze, nos apresenta com clareza a questão da literatura que bem cabe para o
caso de Barros:
“[...] o problema de escrever: o escritor, como diz
Proust, inventa na língua uma nova língua, uma língua de algum modo
estrangeira. Ele traz a luz novas potencias gramaticais ou sintáticas. Arrasta
a língua para fora de seus sulcos costumeiros, leva-a a delirar. Mas o problema
de escrever é também inseparável de um problema de ver e de ouvir: com efeito,
quando se cria uma outra língua no interior da língua, a linguagem inteira
tende para um limite ‘assintático’, ‘agramatical’, ou que se comunica com seu
próprio fora.
O limite não está fora da linguagem, ele é o seu
fora: e feito de visões e audições não-linguageiras, mas que só a linguagem
torna possíveis”
Gilles
Deleuze, Crítica e Clínica, 1997
Nesse caminho
o poeta diz e repete em sua obra o seu contexto criador apontando para um logos frágil do homem. Assim, sua
salvação é a criação. Diz Manoel de Barros:
“Um
esforço para ficar inteiro é que é essa atividade poética. Minha poesia é hoje
e sempre foi a catação de eus perdidos ofendidos. Sinto quase orgasmo nessa
tarefa de refazer-me [...].
Escrevo meus poemas procurando o rumor das
palavras mais que o significado dela. Penso que rimo por dentro, e isso; e
coisa ínsita, não da matéria, Meu processo de escrever é ir desbastando a
palavra até os seus murmúrios e ali encaixar o que tenho em mim de desencontro
[...]
Encontro estímulos para escrever em mim mesmo. Na necessidade
de ser. Poderia inventar que encontro estímulos no pôr do sol, no beco no amor
das pessoas. [...] Escrevo lentamente, todos os dias, tentando ajuntar os
pedaços de mim lançados por aí. Ajeito um arremedo do que sou. Escrevo uma pose
de mim”
Manoel de Barros, Conversas por escrito in: Obra completa, 1990
Barros
vai aos deslimites do fonema para tingir o simples da palavra na sua
complexidade poética, como um catador de cajus que os torra, para obter a sua
castanha, e é no fogo com o fruto que ele acredita e espera o surgimento da
amêndoa farta - do dentro - do caju, o poema.
Mas me
ajuda melhor aqui Elton de Souza:
“atingir
o deslimite não significa destruir-se o negar-se. Ao contrário, é limite que
destrói a invenção que e pode e se deseja. O deslimite, portanto, é uma
experiência com a vida e não com a morte (nos vários sentidos que essa palavra
pode ter)”.
Elton de Souza. Manoel de Barros: a
poética do deslimite, 2010
O Rio
de Janeiro foi um dos seus sabores de águas, entre tantas águas deste Brasil.
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