Antônio Salvador é escritor e jurista brasileiro. Paralelamente à atividade de escritor, dedica-se à carreira acadêmica, tendo ministrado aulas em diversas universidades brasileiras e estrangeiras. Com escritos em diversas áreas do conhecimento, participou de institutos internacionais, como o DiverCult, desenvolvido na Espanha, e a RAIA – Rede Audiovisual Ibero-Americana. Co-Pesquisador do documentário Ctrl-V – VideoControl, lançado em 2011. Autor do livro ensaístico “Três Vinténs para a Cultura”, a ser publicado em 2014. Co-autor do livro documental “Videocracia”, com publicação também prevista para 2014. Com o seu romance de estréia “A Condessa de Picaçurova” foi vencedor do Prêmio Nascente de Literatura, concedido pela USP, além de finalista do Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional, em 2012, e doPrêmio São Paulo de Literatura, em 2013. Nascido em 1980, em Natal, mudou-se para São Paulo ainda criança. Atualmente, vive em Berlim, Alemanha, onde escreve seu segundo romance
Antônio, em
dezembro, esteve no Brasil,e falou sobre
sua obra e a literatura em geral.
Tudo vale a
pena, mas escrever vale mais ,?
Nem tudo
vale a pena. Nem a própria vida vale a pena, se pensarmos em termos de valores
intrínsecos. A vida não possui um valor intrínseco, nem muito menos a
literatura. Para que a literatura valha mais que tudo, eu preciso estar
imantado. Eu só escrevo quando eu quero. O meu corpo precisa estar circundado
por um campo magnético de atração: a atração daquela Verdade de que falei, a
minha verdade como autor, a verdade do narrador, a verdade dos personagens. É o
momento em que me sinto mais humano, quando escrevo. Mas isso não significa
necessariamente algo bom, positivo ou útil. Eu não pretendo ajudar ninguém com
literatura, nem muito menos a mim próprio. As circunstâncias em que a
literatura apareceu para mim como um canal de expressão deram-se bastante cedo.
Meu primeiro contato com a escrita literária deu-se aos cinco anos, quando
escrevi meu primeiro livro. Antes mesmo de ter lido um livro, escrevi um. Dos
cinco aos vinte e cinco anos, devo ter escrito entre dez e quinze livros, até
começar a pesquisa para o meu romance de estréia: “A Condessa de Picaçurova”.
Digo, “estréia” para o público. Da obra pregressa pouco restou.
Considero tudo o que escrevi antes de “A
Condessa de
Picaçuova” mero exercício de composição da minha voz narrativa.
A
brasilidade em tua obra reside num léxico, personagens e contexto, como falar
disso?
Não acredito que as literaturas nacionais tenham mais espaço ou sentido no mundo contemporâneo. Em nome do “nacional” já se cometeram todas as atrocidades possíveis e a literatura foi historicamente usada para isto. Os românticos e os modernistas estiveram rigorosamente empenhados na construção de uma ideia de “Brasil” e obtiveram êxito neste projeto. O que não se pode afirmar é que os resultados desse projeto tenham sido triunfantes, numa perspectiva social. O próprio Mário de Andrade, no final da sua vida, afirmou amargurado que todos os seus feitos derivam de uma vasta ilusão; ele disse com todas as letras “O meu aristocratismo me puniu”. Hoje, experimentamos o Brasil muito mais como um conceito do que como um dado real, isto é, o nacionalismo e a realidade empírica travestem-se impunemente um com as cores do outro. Morando na Alemanha, o país mais desenvolvido da Europa, observo que o Brasil-conceito tomou o lugar do Brasil-real, como nas histórias em que o duplo toma o lugar do personagem. O Brasil transfigurou-se num duplo continental de si mesmo, afirmando-se como país holograma, como país imaginário e, do ponto de vista internacional, nada melhor do que um país imaginário ao sul do equador. Em “A Condessa de Picaçurova”, eu parto dessas observações para, pelo uso das próprias alegorias da cultura popular, efetuar uma cisão no ponto de clivagem do Brasil-conceito. Mas eu não defendo a “brasilidade”, nem o faria jamais, justamente por acreditar na deturpação pérfida que há por trás deste anseio.
A literatura, em qualquer gênero colabora socialmente, mas a que classes e a que vem a literatura,?
Grande parte
dos autores contemporâneos aprendeu a repetir a máxima de que a literatura não
serve para nada ou não tem obrigação de servir para algo. Eu me oponho
frontalmente a essa ideia oca. A literatura, assim como as demais formas de
expressão artística, tem um papel crucial na transformação da pessoa humana e,
consequentemente, da sociedade. Evidente que a literatura não ocupa mais o
espaço que ocupou no século XIX, por exemplo, mas essa derrocada não tem relação
com a linguagem textual, e sim com o aparecimento de outras formas de media,
das quais o livro é uma das mais antigas. Desse modo, o livro de papel, talvez
esteja beirando o anacrônico, mas o texto e, antes, a palavra como canal de
implosão da ordem posta continuam e continuarão tendo o mesmo impacto social. A
questão que se coloca sobre quais classes tem acesso à literatura é um problema
à parte. Em primeiro lugar, a zona de interseção entre “classe socialmente
favorecida” e “elite intelectual” é minúscula. Pertencer à classe alta ou à
classe média não significa pertencer à elite intelectual (ainda que o indivíduo
em questão tenha frequentado a universidade). E não falo isso de dentro de um
gabinete teórico, mas sim a partir da vivência empírica. As ditas classes
“privilegiadas” estão a anos-luz de poder imiscuir-se na chamada “elite
intelectual”. Além do conhecimento básico sobre o que há de mais básico no
mundo, o conhecimento de literatura dos membros das classes abastadas equivale
à média das classes menos abastadas, com foco no consumo dos produtos de massa,
incluindo a literatura de massa. Digo isso, pois determinado tipo de produção
literária no Brasil, na qual me incluo, embora não se apresente e não queira
ser dirigida para nichos específicos, acaba sendo acessado apenas pela elite
intelectual, que está habituada a textos mais sofisticados. E em termos de
acesso prático ao livro, mesmo na era da Internet, tem se verificado grande
dificuldade, sobretudo nos países periféricos. A Alemanha, por exemplo, embora
seja territorialmente vinte e quatro vezes menor do que o Brasil, tem o dobro
de bibliotecas públicas.
O gênero
literário determina um leitor , como, caso da Condessa?
Costumo dizer que, antes do leitor, quem faz escolhas é o texto. O texto literário escolhe os leitores que quer para si. Assim como o leitor entra numa livraria e escolhe um livro, o texto também faz escolhas e elas precedem o gesto do leitor. O autor não tem o completo domínio das consequências, mas, sem dúvida, ele intui quem é o seu interlocutor, com qual grupo pretende instaurar um diálogo. Esse saber decorre do fato de que ele, o autor, é seu principal leitor, então saberá onde está pisando. Quando eu estou escrevendo, não penso no leitor real, de carne e osso, que virá falar comigo depois de ler o livro. Só penso em esculpir a palavra como se eu próprio viesse a ser o único leitor do texto. Isso garante, por um lado, a minha satisfação como autor e, por outro, o grau máximo de autenticidade do texto. Não tenho problema algum em ficar dois meses remoendo uma frase, até a sua completa conversão naquilo que ela deve ser. O que acontece depois que o livro vai para as prateleiras é difícil de prever, mas não impossível. A escrita de “A Condessa de Picaçurova”, por exemplo, seguiu esse padrão de fidelidade para comigo mesmo, o que foi fundamental em termos de atingir a potência máxima da voz que vibrava no meu corpo inteiro. Essa vibração e esse ardor são a exata matéria-prima do fazer literário. Eu dava gritos quando atingia a perfeição do tom e a frase definitiva. Depois chorava de alívio e de felicidade. No meu segundo romance não tem sido diferente. Tudo isso acaba predeterminando o tipo de leitor que pode se debruçar sobre a obra, aquele que é capaz de gozar da mesma sintonia.
O que te fez
escolhar a metáfora da Condessa?
A metáfora
da Condessa não foi uma escolha, foi uma decorrência quase orgânica da ideia
original. Para explicá-la, preciso fazer uma breve incursão. Escrevi o romance
inspirado nas pulsões sociais que assolam o Brasil e o mundo, desde 2008. Para
tanto, fiz uso de alegorias da chamada cultura popular, pois meu maior intuito
era problematizar os paradigmas do Poder, ao mesmo tempo em que levantava
questões sobre a própria forma da contemporaneidade. Existe uma personagem no
romance chamada Cesário Boaventura, que é o gênio hereditário, herdeiro da
aristocracia decadente, positivista e eugenista. Ele desenvolve uma teoria, com
bases anti-darwinistas, segundo a qual o macaco representaria o ponto
culminante da evolução, superando o próprio Homem. A teoria de Cesário advém
não só da observação dos habitantes da cidade fictícia, Coité, mas
principalmente do aparecimento insólito de uma macaca saída do tronco podre de
uma árvore: o orabutã, que em tupi significa “pau-rosado”, “pau-brasil”. A
macaca, Benguela, é acolhida por aquela sociedade e, astuciosamente, galga
espaço e devoção. Ela torna-se a Condessa de Picaçurova. Os títulos, a
heráldica, são o patamar máximo da artificialidade humana: Senhor, Doutor,
Excelentíssimo, Presidente, Diretor – são pura ficção, biombos que escondem uma
pessoa como qualquer outra. Penso que Benguela é a naturalização do grotesco, a
instauração do “chifre” enquanto representação do poder, é a própria decantação
do Poder, o poder com “p” maiúsculo, o poder-poder, o poder metafísico,o poder
sem forma humana, o poder sem origem, sem data de nascimento, o poder que não
acaba, que desafia a Morte, que vence a Morte, o poder que regresserá quantas
vezes for necessário para se renovar seu lugar no mundo.
Qual a
aproximacão, ou nao entre nós e a literatutra na Alemanha, e qual seu
diferencial..entre gêneros,o leitor e os editores?
As
diferenças são abissais. Quanto à produção, os escritores alemães
contemporâneos estão muito mais ocupados em tratar dos temas urgentes da
sociedade do que deslumbrados com a descoberta de própria subjetividade, como é
o caso dos autores brasileiros. Os temas históricos e sociais são recorrentes.
A Alemanha passou por um processo civilizatório dramático: o país foi derrotado
nas duas grandes guerras, repartido pelas potências vencedoras, carrega a pecha
de ter tentado dizimar minorias, foi subjugado por dois regimes totalitários
(capitalismo e socialismo), dividido por muros ideológicos e físicos,
finalmente reunificado. Este ano, por exemplo, fez 100 anos do início da
Primeira Guerra Mundial e 25 anos da queda do Muro de Berlim. Não são temas
longínquos, fazem parte do dia a dia, da vida das pessoas e isto é refletido na
produção literária. Há muitos autores alemães contemporâneos, como Sybille Berg
e Ingo Schulze, comprometidos com a questão social. Além disso, há mais ironia
e humor na literatura contemporânea alemã, a exemplo das poetas Elke Erb e
Monika Rinck, do que em grande parte dos novos autores brasileiros, que beiram
o melodramático e a autocomiseração. Evidentemente, estou falando também como
leitor e nisso há grande parcela de gosto pessoal. Mas, em relação ao que tem
chegado até mim da nova literatura brasileira, tenho a impressão de que muitos
autores se banquetearam e não gostaram! Estão unicamente empenhados em mostrar
o quão modernos, urbanos e universais podem ser, querem ser “escritores do
mundo”. Entre os alemães essa tentativa, esse empenho é considerado “kitschig”,
em bom português, cafona. Isto, porque tanto o leitor quanto o autor alemão são
de fato urbanos, modernos, suas famílias vivenciaram dramas de dimensões
realmente universais, e eles não precisam provar isso – a Alemanha é o país
mais desenvolvido da Europa e o mais cheio de cicatrizes. Essa é a verdade dos
alemães. Do mesmo modo, tanto nos leitores quanto nos meus amigos autores
alemães, percebo o anseio pela verdade do outro, venha ele de onde vier. O
Brasil é um país com um litoral gigantesco, a maior floresta do mundo,
problemas sociais intrincados, corrupção endêmica, violência generalizada,
diversidade cultural incomparável, se nada disso aparece refletido na produção
literária do autor brasileiro, a tendência do público alemão é considerar que o
autor é provinciano, mentiroso ou está mal informado sobre as próprias
circunstâncias históricas. O papel do editor aqui, como em qualquer país, é o
de procurar incansavelmente um livro que venda.
Como nossa produção
é vista no mercado germânico?
Paulo, para
você ter uma ideia, eu fiquei dois meses, entre julho e agosto, literalmente
ilhado. Precisei ficar isolado numa ilha ao norte da Alemanha, para concluir a
primeira versão do meu próximo romance. Essa ilha, chamada Hiddensee, é
minúscula. Só há uma livraria, igualmente pequena. Na última semana, chegou uma
nova safra de livros e me deparei com o "Geschwister des Wassers" de
Andrea del Fuego – autora brasileira, traduzida para o alemão, na vitrine de
uma livraria minúscula dessa pequena e desconhecida ilha. Note-se: uma autora
que rejeita o anseio contemporâneo brasileiro de parecer urbano e “do mundo”.
Isto significa que há interesse e espaço no mercado internacional para a
verdade brasileira. Outros autores brasileiros contemporâneos que tem visibilidade
e são efetivamente lidos são Edney Silvestre e Bernardo Carvalho. São autores
bastante comentados e queridos do público, por abordarem questões sociais,
políticas, e fugirem aos estereótipos. Quanto à Feira de Frankfurt, é uma feira
de negócios do mercado editorial e não uma feira de literatura. Eu estive na
homenagem ao Brasil, em 2013, e este ano também. Considero que ambos os
eventos, combinados com as bolsas de tradução da Biblioteca Nacional, foram
importantes para a inserção da literatura brasileira no mercado internacional.
Está muito longe da possibilidade de se falar em “presença” da literatura
brasileira no panorama internacional, mas houve avanço.
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