Sim. E existe uma data para isso. Idos de 1910. E, mais: não foi deus algum, foi o Homem do saber e da mímesis.
Essa é a idéia central da tese de doutoramento do Professor de História da UFRN Durval Muniz de Albuquerque Júnior, que também está ministrando uma disciplina no Programa de Pós-graduação em História da UFPE. A tese foi apresentada em 1994, na UNICAMP, e circula nas livrarias com edição da Cortez Editora: São Paulo e Editora Massangana: Recife, sob o título de “A invenção do Nordeste e outras artes”.
A obra (merece ser nomeada de Obra) surpreende não apenas pelo título ousado, mas pela sua consistência, estilo e cientificidade. Vem para tirar o sono de muita gente acomodada sob velhos conceitos e signos.
Em seu trabalho, o autor mostra como, até meados da década de 1910, o Nordeste ainda não existia. Não se pensava em “Nordeste”, nem muitos menos eram percebidos os “nordestinos”.
Antônio Conselheiro: o Redentor dos Sertões
O Nordeste emergiu aos poucos, no seio de discursos jornalísticos, artísticos, científicos e literários, e na mídia em geral, sobretudo a partir da obra Os Sertões (1906) de Euclides da Cunha e dos textos regionalistas da década de 1920, sob a assinatura de autores como Gilberto Freyre.
Ao longo do século, foram sendo forjadas as imagens estereotipadas do nordestino cabeça-chata, o paraíba, o sertanejo pobre, raquítico, amarelo, fraco porém forte; o nordestino cangaceiro, messiânico (inspirado nas imagens de Lampião e de Antônio Conselheiro), miserável, ignorante, em oposição ao homem civilizado, educado e cosmopolita do Sul-Sudeste.
Zeferino: Oxen, num foi deus que me criou não, foi?
Voz: Não, Zeferino, foi o Henfil mesmo!
O autor escreve: “É, parece que nossa escritora, defensora da ‘Nordestinidad’, Rachel de Queiroz, tem razão: a mídia tem o olho torto quando se trata de mostrar o ‘Nordeste’, pois eles só querem miséria. (…) Podemos concordar, então, com nossa escritora quando afirma que a mídia não vê o Nordeste como ele é? Não, porque isso seria pleitear a existência de uma verdade para o Nordeste, que não existe.”
Para o autor, os discursos sobre o “Nordeste” e os “nordestinos” são todos articulações de uma poderosa estratégia de etereotipização muito bem montada e reproduzida ao longo do século, de tal forma a “naturalizar” a imagem de um Nordeste seco, pobre e necessitado de ajuda dos sulistas.
E, o autor vai ainda mais longe: “O próprio Nordeste e os nordestinos são invenções destas determinadas relações de poder e do saber a elas correspondente. Não se combate a discriminação simplesmente tentando inverter de direção o discurso discriminatório. Não é procurando mostrar quem mente e quem diz a verdade, pois se passa a formular um discurso que parte da premissa de que o discriminado tem uma verdade a ser revelada. Assumir a ‘Nordestinidad’, como quer Rachel de Queiroz, e pedir aos sulistas que revejam seu discurso sobre o nordestino verdadeiro, vai apenas ler o discurso da discriminação com o sinal trocado, mas a ele permanecer preso.”
O trabalho de Durval Muniz, baseado em alguns princípios metodológicos desenvolvidos e aplicados por Michel Foucault, quais sejam, da arqueologia e da genealogia. Neste estudo, Durval Muniz opera o que Foucault não fez: um projeto arqueo-genealógico, análise esta que permite perceber as relações de força que permeiam os discursos instituintes da idéia de Nordeste enquanto um espaço natural.
(Para mais sobre Foucault, veja o ótimo livro de Roberto Machado, Ciência e Saber – A trajetória da arqueologia de Foucault)
O livro A Invenção do Nordeste custa cerca de R$36,00 nas principais livrarias da cidade.
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