12.01.2011 - Alexandra Prado Coelho
Encostado ao sapato gigante feito de panelas, dentro de um enorme bule ou rodeado de peluches, Gilles Lipovetsky, o filósofo francês que analisou a nossa relação com o luxo, o consumo, a felicidade e o vazio, explica porque é que a obra de Joana Vasconcelos lhe interessa: "Porque corresponde às minhas análises"
"Ça fait très gangster...", ri Joana Vasconcelos quando Gilles Lipovetsky põe uma cigarrilha na boca. O filósofo francês está sentado dentro de um carro criado pela artista plástica portuguesa - um velho Morris Oxford preto, todo coberto por espingardas de plástico a apontar para trás, e, no interior, uma confusão de bonecos de peluche de todas as formas e cores.
Lipovetsky posa, divertido, para o fotógrafo, enquanto à volta os bonecos de peluche parecem ter enlouquecido, mexendo-se e chiando cada um para seu lado, criando o caos dentro do carro. Encostado ao vidro da frente está um panda sorridente, e ao lado deste uma pequena sereia. Há monstros e companhia, porquinhos cor-de-rosa, dálmatas, e, no "lugar do morto", um enorme hipopótamo.
Gilles Lipovetsky e Joana Vasconcelos entendem-se. Isso é evidente logo no momento em que entramos no atelier dela, na Doca de Alcântara Norte, em Lisboa. À nossa esquerda várias colaboradoras da artista "lutam" com "Contaminação", enorme peça que está a ser desmantelada e colocada em sacos para enviar para Veneza, onde será exibida na exposição "Le Monde Vous Appartient", no Palazzo Grassi, a partir de 2 de Junho. Passamos do espaço de entrada, usado como zona de exposição, para a área de trabalho mais dura onde outros colaboradores estão a soldar peças no que parece ser um enorme cone de gelado virado para baixo. E é um enorme cone de gelado virado ao contrário. Faz parte de uma série baptizada como "Delícias", que será mostrada no Mónaco em Julho - para além do gelado, baptizado como "Tutti Frutti", há um cupcake e uma fatia de tarte, todos enormes e cobertos de pequenas formas de plástico coloridas, como as que as crianças usam na praia, em formato de morangos, pêras, maçãs e croissants. Deixamos o cone de gelado para trás e entramos na cantina do atelier de Joana Vasconcelos. O almoço acabou, a artista está a conversar em francês com Lipovetsky, que pede um café e uma Coca-Cola e pergunta se pode fumar uma cigarrilha.
Ele escreve o que ela faz
Há um dia e meio que o filósofo francês que descreveu as relações da nossa era com o luxo, a sociedade de consumo e a busca da felicidade, anda pelo atelier a conhecer melhor a obra de Joana Vasconcelos, sobre a qual irá escrever (com Jean Serroy) um texto para um livro. Quando perguntaram a Joana quem é que ela gostaria de convidar para escrever - o livro vai ser editado pela Fernando Machado, velha livraria portuense recentemente adquirida por Sílvio Gouveia, que a transformou também em editora - o nome de Lipovetsky surgiu como uma evidência.
"A sensação que tenho quando leio os livros dele é que ele escreve aquilo que eu faço", explica a artista. "As pessoas que teorizam têm uma influência óbvia na produção do presente, naquilo que outros pensam e executam. A minha obra está muito ligada ao consumo, às preocupações do presente, aos objectos de agora. O meu trabalho tem a ver com o luxo, a moda, a banalidade, o vazio, o que é cultura e o que não é cultura - todas essas questões que ele trabalha profundamente são questões que eu levanto na minha obra".
Depois de ter lido os seus livros e de muitas vezes ter encontrado em textos sobre o seu trabalho referências a Lipovetsky, Joana tem curiosidade de saber o que resultará do encontro do autor de "A Era do Vazio" e de "Felicidade Paradoxal" com os seus sapatos gigantes feitos de panelas ou os seus corações feitos de talheres de plástico colorido. "O que importa é ver como é que ele vai desenvolver o seu pensamento, ou se a minha obra é suficientemente interessante para ele desenvolver algum pensamento sobre ela". É um risco, reconhece. "Pode ser apenas coincidente com algumas das ideias dele e não ser suficientemente estranha. O ser demasiado perto daquilo que ele pensa pode não ser estimulante."
Para já, Lipovetsky está-se a divertir. Entusiasmou-se com o carro das espingardas e dos peluches - peça que Joana fez para os supermercados Modelo ligada a um projecto para sensibilizar as crianças em idade escolar para a reciclagem. Ela tinha-o baptizado como "Carro a Pilhas". Ele sugeriu "War Games".
Mas mal sai do carro e já está, com um braço sobre os ombros de Joana, a posar para outra fotografia, desta vez dentro de outra peça da artista, "Miss Jasmine", um bule enorme feito de ferro forjado e que já está vendido a um produtor de chá coreano.
Lipovetsky passeia-se descontraído entre os objectos do atelier, onde todos parecemos liliputianos num mundo maior do que nós. Joana, vestida de preto, com um lenço ao pescoço cheio de caveiras brancas, continua a conversar com o seu convidado. Agora falam do número de línguas em que devem ir os textos do livro e de como isso é importante para se chegar a um público mais vasto. Conversando sobre estratégias de marketing, Lipovetsky parece estar como peixe na água. E multiplica-se em ideias.
Subimos a escada para uma sala de reuniões e Joana mostra a caixa vermelha em que o livro - que terá também textos da historiadora de arte Raquel Henriques da Silva - vai ser vendido. "É igual às caixas em que as minhas obras são transportadas. Quando se participa em feiras ou mostras internacionais é importante ter caixas facilmente identificáveis. As minhas são vermelhas." O livro (que poderá também ser comprado sem caixa) é assim tratado como uma obra de arte. Algumas caixas terão ainda um pequeno coração em filigrana. "O desejo pelo livro deve ser o mesmo que por uma obra de arte", explica. Mas Lipovetsky acha que ainda falta qualquer coisa.
"Porque é que não junta um desenho assinado com um esboço de um dos seus trabalhos?", propõe, entusiasmado.
"Detesto a reprodução mecânica", responde Joana. "E não sou nada bidimensional. Mesmo a pintura que me atrevo a fazer nunca é bem pintura."
Sim, faz desenhos, mas não costuma vendê-los, diz, enquanto se encaminha, com Lipovetsky, para o seu gabinete, e mostra uma prateleira cheia de blocos de notas de lombadas cinzentas, numerados. É aqui que faz os esboços das peças. "Guardo-os todos". Abre um ao acaso e vai mostrando os desenhos, alguns apenas esboços de ideias iniciais, outros com as ideias já próximas da concretização. O filósofo observa atentamente.
Lipovetsky ainda não desistiu. "Podia ser uma fotografia assinada", propõe agora. Talvez, sugere alguém, uma das que estão na parede e que mostram a viagem de Joana numa Piaggio até Fátima (da peça www.fatimashop) para comprar figuras da Nossa Senhora que brilham no escuro. "Exacto", diz ele.
Joana está agora a segurar um IPad para mostrar a Lipovetsky outros trabalhos seus, e os dois discutem qual a peça que resultaria melhor na capa. Ela pára na imagem do trabalho "Vista Interior", uma caixa fechada com estores em cujo interior está guardado todo o conteúdo de uma casa portuguesa, desde as pastas de dentes a um leitor de cassetes. "Esta peça tem dez anos. Quando há pouco tempo quisemos substituir as embalagens muitas marcas tinham desaparecido. A nossa sociedade mudou tanto que em dez anos várias marcas desapareceram."
Flirtar com o inimigo
Marketing, velocidade de consumo, produtos que já desapareceram, voragem da vida moderna - Lipovetsky está claramente no seu mundo. "Joana é hipermoderna", diz. "A arte moderna construiu-se contra o kitsch. Toda a arte moderna era uma arte da desconstrução, da purificação, era preciso ir sempre no sentido da maior radicalidade, da simplificação das formas, do minimalismo, do conceptualismo, da abstracção total".
Joana Vasconcelos é o contrário de tudo isso. A evidência entra-nos pelos olhos dentro. Ou melhor, somos nós que quase entramos dentro dela. Se nos distraímos acabamos a conversar dentro da "Miss Jasmine" ou a encostarmo-nos ao sapato feito de panelas (este que aqui está é a "Dorothy"). "A modernidade construiu-se nesse acto de cortar com as convenções, com o academismo", continua o filósofo. "Mas neste momento já não estamos numa sociedade moderna mas em sociedades hipermodernas. O problema já não é cortar com o passado. Isso já está feito. Antes era preciso rejeitar, ser contra. Hoje somos contra o quê? Estamos em sociedades que radicalizaram tudo, o mercado, o consumo, a tecnologia, os media, a pornografia".
As coisas ficaram claras desde Andy Warhol. "Se a arte moderna rejeitou tudo o que era mediático e comercial, com Warhol a situação mudou e agora todos os artistas contemporâneos flirtam, de uma forma ou de outra, com o que antes era o inimigo." À nossa volta há estátuas cobertas por crochet, e lá ao fundo dois homens continuam a trabalhar no cone de gelado gigante. Joana Vasconcelos, o marido, Duarte, e o editor, Sílvio, esperam-nos já dentro do carro. Vamos ver a piscina levantada em forma de Portugal (a peça chama-se "Portugal a Banhos") que esteve no Terreiro do Paço e está agora na zona das Docas, e depois os "Castiçais" à porta do Museu Berardo.
Porque é que Lipovetsky aceitou este desafio de escrever um texto sobre a portuguesa? "Porque corresponde às minhas análises. Os trabalhos dela seduziram-me porque é uma artista que fala do mundo contemporâneo, faz coisas muito próximas da vida. É um universo próximo do meu."
Já passámos pela piscina, fomos ver a Torre de Belém, passámos pelos Jerónimos e chegámos ao CCB. Anoiteceu e está vento. Joana está ali ao fundo a falar com Jean-François Chougnet, director do Museu Berardo, e Lipovetsky parou junto ao "Castiçal" de garrafas verdes e continua a explicar o que lhe agrada no trabalho dela. "Gosto muito do facto de que ela parte de um olhar de mulher, mostra um universo de mulheres, mas não tem um olhar feminista. As feministas tiveram o seu papel mas hoje são um bocado aborrecidas".
O trabalho de Joana parte de uma constatação e não de um confronto. "Hoje há uma reconciliação das sociedades com o seu passado. O contemporâneo já não é a oposição ao passado. Ela pensa o que vê sem ter a necessidade de rejeitar ou negar esse passado".
E - outro sinal de pacificação - "há nela uma conciliação entre a desconstrução e a estética, ela faz coisas com um valor estético, com uma qualidade plástica". Hoje, numa época em que "já não temos modelos radicais de transformação total do mundo", a arte já não é revolucionária, acredita Lipovetsky. A arte é (também) moda, consumo, negócio. Crítica, sim, mas dentro do jogo. "Eu também assumo isso para mim", diz. "E sou criticado por isso". Lipovetsky acha que vivemos em sociedades obcecadas pelo consumo, mas não quer fazer a revolução. Constata, apenas. "A revolução é uma invenção da modernidade. Os modernos queriam destruir o mercado, a democracia. Hoje não há alternativa. Podemos criticar, mas jogamos o jogo."
E divertimo-nos - como só o poderia fazer um filósofo francês que pensa o luxo, o consumo e o vazio, a fumar uma cigarrilha num carro cheio de espingardas de plástico e bonecos de peluche.
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