Antonio Arnoni Prado
by estadao
Exercícios de Leitura, coletânea de Gilda de Mello e Souza, ganha nova edição e reafirma sua escrita original e múltipla
Gilda de Mello e Souza (1919- 2005) inclui-se entre aquelas vozes de cultura cuja ausência, entre nós, a passagem dos anos só faz aumentar. Homenageada postumamente em 2008 com uma edição em que alguns dos intelectuais mais expressivos de São Paulo expuseram aspectos relevantes de sua obra de escritora, de ensaísta e de crítica (Gilda, A Paixão pela Forma, organizada por Sérgio Miceli e Franklin de Mattos), surge agora, publicada pela livraria Duas Cidades e a Editora 34, uma nova edição dos seus Exercícios de Leitura, originalmente lançados em 1980.
Para o leitor de hoje, trata-se de uma oportunidade de travar contato - num livro agora enriquecido de notas, informes e ilustrações valiosas - com a multiplicidade integradora de uma escrita singular e direta cuja maior virtude talvez seja a de harmonizar a "paixão pela forma" à capacidade de refazer a linguagem da arte na expressão mais funda de suas figurações e processos latentes, da literatura ao cinema, das artes plásticas ao teatro, da estética à crítica da cultura.
Nesse arranjo de intervenção sensível e intelecção rigorosa, dados novos são os achados na essência das obras e das personalidades artísticas, que se completam com uma espécie de contraponto inesperado e sempre inovador, a traduzir o voo largo da invenção crítica em formulações tão diferentes como a superação no tempo das divergências estéticas de Jean Maugüé e Claude Lévi-Strauss e a ótica da captação momentânea da imagem no traçado do desenho primitivo.
Frente a eles, a sensação do leitor é que as análises de Gilda se expandem a partir de segmentos aparentemente inconclusos, juntando a percepção iluminadora do fato concreto à teia infindável de suas articulações, não necessariamente intercorrentes, mas encerradas na complexidade das linguagens que as concebem ou transformam sob a lógica imprevisível da imaginação criadora. De tal modo que os cinco blocos em que se organiza o livro - estética, literatura, teatro, cinema e artes plásticas - se, de um lado, remetem a configurações específicas em códigos diferentes, de outro parecem depender de uma integração circular e intermitente, cujos avanços só se concretizam a partir da reinserção do que foi interrompido antes, posto entre parênteses ou provisoriamente descartado em nome da apreensão do conjunto.
Isso explica que nos textos de Gilda a conclusão muitas vezes se reconstrua e mude de rumo, não apenas corrigindo a progressão do argumento, como também - a exemplo do que ocorre na leitura de Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade - alterando as formulações iniciais da análise, para sugerir que o que antes se afigurava como uma visão neutra da História e uma oportuna revisão crítica da Inconfidência, acabe se transformando num episódio "extremamente empobrecido" do filme, quando o diretor se decide pela "valorização irrestrita" de Tiradentes, para deixar injustamente na sombra a admirável força de caráter com que Tomás Antonio Gonzaga enfrentou os seus algozes.
Como o leitor verá, longe de ser uma notação isolada, é a presença dessa ressalva que elucida - na leitura contígua de O Desafio, de Paulo César Saraceni - o descompasso "entre a função esclarecedora do diálogo e a função impregnante da imagem", quando o diretor, "por necessidade polêmica", nos diz Gilda, decide trazer para o primeiro plano os prolongados silêncios da inexpressividade pequeno-burguesa de Ana, deixando as sequências mais reveladoras das falas do protagonista para um plano secundário, o que não só desarranja o valor artístico das personagens, como estabelece "um equívoco perturbador que compromete as intenções de Saraceni". A tal ponto - ela observa - que "se fosse possível projetar O Desafio sem som, talvez víssemos surgir na tela um filme diametralmente oposto ao que foi imaginado", aparecendo Marcelo como uma personagem apagada, enquanto Ana "assume a autoridade do primeiro plano", invertendo paradoxalmente a perspectiva da fita.
É com essa estratégia de contenções e avanços, de interpolações e desvios que a vemos, nestes Exercícios de Leitura, desmontando armadilhas e driblando impasses ocultos seja nas transposições obsessivas do Fellini decadentista, seja nas dessacralizações míticas que vai escavando na filmografia de Visconti, ou mesmo na figuração elíptica dos signos do grotesco nos filmes de Glauber Rocha.
Em seu conjunto, o foco que move o livro são as mutações da linguagem a partir das exigências dos temas estudados, como se o estilo de Gilda fossem muitos estilos, como se à linguagem da memória correspondesse uma entonação que vem do passado sem perder a perspectiva do presente, para repensá-lo ou discuti-lo sem quaisquer dogmatismos. É dessa perspectiva que a variedade de registros nos permite reviver, por exemplo, a modernidade da geração da revista Clima; a dimensão formadora do "espírito brasileiro" de Roger Bastide; a superação da "miopia" que a prosa de Clarice Lispector põe abaixo, estilhaçando aquele acanhado "universo de lembranças e de esperas" a que então se resumia, no Brasil, o destino das mulheres.
Mas há ainda as revelações sobre os "testemunhos da realidade" brasileira, a nos mostrar, por exemplo, como o teatro de Jorge Andrade se antecipou em São Paulo aos estudos sociais, encarregando-se da tarefa realizada no Nordeste pelo romance de 1930; além de incursões que se espraiam da crônica para os domínios da estética, de onde Gilda refaz, no desespero subterrâneo dos clowns de Samuel Beckett, o caminho para interrogar, num contexto diverso, as obsessões paralelas da solidão de Antígona, em Anouilh, bem como os tormentos que Chekhov reservou a Natacha, ao afastá-la da submissão linear de Olga, Irina e Macha, para depois jogá-la à crueza do destino.
Dos tempos inaugurais da Faculdade de Filosofia, com os mestres franceses, aos primeiros ensaios intelectuais com o grupo de Clima, estes Exercícios de Leitura vêm demonstrar quanto pesaram no legado crítico de Gilda de Mello e Souza, num primeiro momento, a arte do inacabado, que lhe veio de Mário de Andrade, e cujo maior interesse foi pensar a crítica como uma técnica do inacabado, sempre aberta e provisória, destituída de qualquer preocupação teórica ou dogmática.
E, depois - num traço decisivo para a trajetória do grupo Clima -, aquela "paixão pelo concreto" (na expressão de Antonio Candido) que a presença de Paulo Emílio Salles Gomes infundiu aos companheiros da revista, distanciando-os do pensamento abstrato e das teorias, como um perito mais que um scholar, valorizando a "consciência da práxis" por meio de uma "escrita sem tempo, sem moda, que, como ele", nos diz Gilda, "soube preservar na disciplina da vida universitária o mesmo frescor da juventude - a confiança na aposta, o gosto arriscado do imprevisto".
Antonio Arnoni Prado é professor de literatura brasileira na Unicamp e autor, entre outros, de Trincheira, Palco e Letras - Crítica, Literatura e Utopia no Brasil (Cosac Naify)
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