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Para Roni:
No escuro da minha língua, suo mais , só não deixaste um
grampo,
mas cantaste as violas dos rios e do mar sobre meus ouvidos moucos,
agora
o mar e o rio são mais claros e ouço-te. Paulo Vasconcelos
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Roni-Ronidalva de Andrade Melo- |
Nem todo os poetas estão
postos em livros de poesia, nem todos publicam seus poemas. Eles são uma poesia
muda, às vezes ácida, às vezes doce, às vezes sem um sabor definido, mas são
poetas do olhar, do escutar, de procurar a si, o outro e, sobretudo, do agir
sobre um perfil de humanidade. O poeta poetando no equilibrismo de ser apenas,
sem palavras de edição, ou seja, o poema é o agir.
Roni, Ronidalva de Andrade
Melo, pernambucana, foi uma poeta que se publicou no seu trajeto de vida, encontrando-se,
desencontrando-se e encontrando outros, em que afinava sua poética de ser.
Desde quando professora em
cursinhos e colégios, poetava para os alunos na busca de uma humanidade, usando
até mesmo a harmonia do seu canto. Foi assim uma intérprete de tantos outros
homens e mulheres, desafiando a empatia de muitos, mas segura de que era assim
que tinha que ser para enaltecer o humano e desdenhar com o açoite aos que
repudiam os outros não bem-aventurados do poder.
Nas longas conversas noite a dentro,
anos ‘70, mirando sobre as pontes o Recife-PE, da Boa Vista, perto da Faculdade
de Direito, zombávamos do academicismo, do nada, cantarolando o bloco da
saudade, ou na ponte da Torre quando caminhávamos para casa, por vezes
sentávamos, ainda podia-se fazer isso a este tempo, e riamos, dizíamos versos
como bêbados enliricados e soltávamos canções na goela, ás vezes atraindo violeiros
que se juntavam a essa louca trupe e formávamos um bloco improvisado de vida. O
mesmo ocorreu em Salvador, na Avenida Sete ou lado do poeta Castro Alves
olhando o mar. Ou em São Paulo, reclamando do frio e dizendo que nos
engessaríamos para suportá-lo, sim quando ela morou aqui alguns anos fizemos isso
algumas vezes no espinhaço da Paulista ou no Butantã, no Jardim Bonfiglioli.
Em sucessão e na eterna avidez
pela vida, tornou-se uma porta voz do estudo da Justiça e da Segurança, da
violência em Pernambuco, Recife, Fundação Joaquin Nabuco. Apontou
os pontos da violência humana, observando as ruas, os cárceres, enfim, o homem nas
suas características de violento, no escopo do estado e a justiça.
Buscou entender o estado no
âmbito da Segurança, focando a Justiça e seu poder de controle e contradições,
e fez com determinação olhar o homem subjugado a corpus de leis e desmandos. Aqui
sua poesia era ácida e de uma força de um Hermes, cravando seus versos sobre
uma hermenêutica jurídica. Porém não se distanciou da poesia humana, mesmo
neste estado violento, ao contrário, acusou-o e buscou defender o outro anônimo
das garras da injustiça e aí reside seu lirismo teórico, até mesmo no nome de
sua obra principal: O poder de punir e
seus equilibristas - Massangana, Fundaj
Recife, 2011.
Regozijava-se com a poesia nas
entrelinhas das línguas dos teóricos poetas como Spinoza, Foucault (que, aliás,
foi uma das pioneiras em trazê-lo à tona em Pernambuco, conciliando-o ao seu
estudo empírico), Deleuze, Nietzsche e tantos outros poetas declarados, como
Pessoa, Alberto Cunha Melo, José Mario Rodrigues, Manuel Bandeira, Maria do
Carmo Barreto Campelo, Zé Régio, Carlos Pena Filho, Cecilia, Clarice, e muito
mais. Mas Drummond, para mim pelo menos, era uma marca sua, em que ela
descontruía sua palavra encontrando um quê escondido em seus poemas. Assim foi
com Desaparecimento de Luísa Porto de
Carlos Drummond de Andrade*, em que aqui destaco alguns trechos:
Pede-se a quem souber
do paradeiro de Luísa Porto
avise sua residência
À Rua Santos Óleos, 48.
Previna urgente
solitária mãe enferma
entrevada há longos anos
erma de seus cuidados.
...
Luísa é de bom gênio, correta, meiga, trabalhadora,
religiosa.
Foi fazer compras na feira da praça.
Não voltou.
...
Faz tanta falta.
Se, todavia, não a encontrarem
nem por isso deixem de procurar
...
Mas
se acharem que a sorte dos povos é mais
importante
e que não devemos atentar nas dores individuais,
se fecharem ouvidos a este apelo de campainha,
não faz mal, insultem a mãe de Luísa,
virem a página:
....
Já não
adianta procurar
minha querida filha Luísa
que enquanto vagueio pelas cinzas do mundo
com inúteis pés fixados, enquanto sofro
e sofrendo me solto e me recomponho
e torno a viver e ando,
está inerte
gravada no centro da estrela invisível
Amor.
Não sei quem seria Roni: a Luísa ou mãe, quiçá as
duas, mas de uma coisa estou certo, ela procurava... essa procura era a própria
vida, tecida no mais estranho e simples algodão, bordado com as cores mais
simples e talvez pouco chamativas, mas procurava, tomava um gole de água e procurava,
procurava, era essa busca para uma substância sua e dos que a rodeavam. Como
pesquisadora, e nisso o poema é claro, rodeou-se de olhares inconstantes, de
avisos desavisados, mas perquiria no ausente a presença, levantou bandeiras,
comprou arcos e desfechou-os, às vezes atoa, como atoa é a vida. Amou e desamou,
odiou como flagra de um avesso dos afetos humanos, era contradita, mas buscava
seus porões, mesmo com pouca luz, mas se avisava, tinha mãe, rainhas-filha, tias, tios,
irmãos, flores amigas, mas avisava-os de sua contradição ou desajeitava-se, mas
perseguia sua busca, como a do poeta, como ora na boca insipida da morte ela
talvez poete sendo invisível ao centro do silêncio da estrela oculta nos céus
de um Recife.
*Texto
extraído do livro "Nova Reunião — Novos Poemas", José Olympio Editora
— Rio de Janeiro, 1985, pág. 230
Ronidalva de Andrade Melo
Formada em direito
pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e mestra em serviço social,
“Roni”, como era conhecida entre os amigos, se notabilizou principalmente por
estudos em torno das incongruências do sistema prisional brasileiro.
Especialista em Direitos Humanos, defendia a necessidade de uma ressocialização
penal que, de fato, funcionasse como forma de recuperação dos presidiários.
Muitas das suas pesquisas foram desenvolvidos ao longo das mais de três décadas
trabalhadas na Fundaj. “Uma instituição é feita das pessoas que a constituem.” -
Apud Fundaj
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